Manuel Bandeira
No mil frases.com, você terá a oportunidade de explorar uma seleção cuidadosamente curada dos poemas de Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, permitindo que sua mente se perca nas sutilezas das palavras e suas interpretações cativantes. Sinta-se convidado a descobrir a profundidade de sua poesia e a riqueza de suas contribuições para a cultura literária brasileira.
Manuel Bandeira
Jardim da pensãozinha burguesa. Gatos espapaçados ao sol. A tiririca sitia os canteiros chatos. O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam. Os girassóis amarelo! resistem. E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais. Um gatinho faz pipi. Com gestos de garçom de restaurant-Palace Encobre cuidadosamente a mijadinha. Sai vibrando com elegância a patinha direita: — É a única criatura fina na pensãozinha burguesa. Petrópolis, 1925
Manuel Bandeira
É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia... Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha... No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada. (Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!) Um velho senta-se a meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia... Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância. Ei-lo que saca de um papel... Dobra-o direito, ajusta as pontas, E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas... Com outro moço que se cala. Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala: — É de política. Adiante uma senhora, magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra. E, junto dela, Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou sevinha. Se ela vier, mando matar Uma galinha." E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia...
Manuel Bandeira
Pois que és Isadora, Dança, dança, dança. Não direi agora Que ainda és criança. Mas quando chegares A idade da trança, Dança, dança, dança, Dança até cansares. Dança, dança, dança Como na Ásia dançam As moças de Java. Pois que és Isadora, Dança como outrora, Como linda outrora Dançava, dançava Isadora Duncan.
Manuel Bandeira
Parada do Lucas — O trem não parou. Ah, se o trem parasse Minha alma incendida Pediria à Noite Dois seios intactos. Parada do Lucas — O trem não parou. Ah, se o trem parasse Eu iria aos mangues Dormir na escureza Das águas defuntas. Parada do Lucas — O trem não parou. Nada aconteceu Senão a lembrança Do crime espantoso Que o tempo engoliu.
Manuel Bandeira
I A sala em espelhos brilha Com lustres de dez mil velas. Miríades de rodelas Multicores — maravilha! — Torvelinham no ar que alaga O cloretilo e se toma Daquele mesclado aroma De carnes e de bisnaga. E rodam mais que confete, Em farândolas quebradas, Cabeças desassisadas Por Colombina ou Pierrette. II Pierrot entra em salto súbito. Upa! Que força o levanta? E enquanto a turba se espanta, Ei-lo se roja em decúbito. A tez, antes melancólica, Brilha. A cara careteia. Canta. Toca. E com tal veia, Com tanta paixão diabólica, Tanta, que se lhe ensangúentam Os dedos. Fibra por fibra, Toda a sua essência vibra Nas cordas que se arrebentam. III Seu alaúde de plátano Milagre é que não se quebre. E a sua fronte arde em febre, — Ai dele! e os cuidados matam-no. Ai dele! que essa alegria, Aquelas canções, aquele Surto não é mais, ai dele! Do que uma imensa ironia. Fazendo à cantiga louca Dolorido contracanto, Por dentro borbulha o pranto Como outra voz de outra boca: IV — "Negaste a pele macia "À minha linda paixão! "E irás entregá-la um dia "Aos feios vermes do chão... "Fiz por ver se te podia "Amolecer — e não pude! "Em vão pela noite fria "Devasto o meu alaúde... "Minha paz, minha alegria, "Minha coragem, roubaste-mas... "E hoje a minh'alma sombria "E como um poço de lástimas..." V Corre após a amada esquiva. Procura o precário ensejo De matar o seu desejo Numa carícia furtiva. E encontrando-o Colombina, Se lhe dá, lesta, à socapa, Em vez de beijo uma tapa, O pobre rosto ilumina-se-lhe!... Ele que estava de rastros, Pula, e tão alto se eleva, Como se fosse na treva Romper a esfera dos astros!...
Manuel Bandeira
A chuva cai. O ar fica mole... Indistinto... ambarino... gris... E no monótono matiz Da névoa enovelada bole A folhagem como a bailar. Torvelinhai, torrentes do ar! Cantai, ó bátega chorosa, As velhas árias funerais. Minh'alma sofre e sonha e goza À cantilena dos beirais. Meu coração está sedento De tão ardido pelo pranto. Dai um brando acompanhamento À canção do meu desencanto. Volúpia dos abandonados... Dos sós... — ouvir a água escorrer, Lavando o tédio dos telhados Que se sentem envelhecer... Ó caro ruído embalador, Terno como a canção das amas! Canta as baladas que mais amas, Para embalar a minha dor! A chuva cai. À chuva aumenta. Cai, benfazeja, a bom cair! Contenta as árvores! Contenta As sementes que vão abrir! Eu te bendigo, água que inundas! Ó água amiga das raízes, Que na mudez das terras fundas Às vezes são tão infelizes! E eu te amo! Quer quando fustigas Ao sopro mau dos vendavais As grandes árvores antigas, Quer quando mansamente cais. É que na tua voz selvagem, Voz de cortante, álgida mágoa, Aprendi na cidade a ouvir Como um eco que vem na aragem A estrugir, rugir e mugir, O lamento das quedas d'água!
Manuel Bandeira
Quando n'alma pesar de tua raça A névoa da apagada e vil tristeza, Busque ela sempre a glória que não passa, Em teu poema de heroísmo e de beleza. Gênio purificado na desgraça, Tu resumiste em ti toda a grandeza: Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça O amor da grande pátria portuguesa. E enquanto o fero canto ecoar na mente Da estirpe que em perigos sublimados Plantou a cruz em cada continente, Não morrerá sem poetas nem soldados A língua em que cantaste rudemente As armas e os barões assinalados.
Manuel Bandeira
Tu não estás comigo em momentos escassos: No pensamento meu, amor, tu vives nua — Toda nua, pudica e bela, nos meus braços. O teu ombro no meu, ávido, se insinua. Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a... Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua... Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa. O teu corpo crispado alucina. De escorço O vejo estremecer como uma sombra n'água. Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço. E para amortecer teu ardente desejo Estendo longamente a mão pelo teu dorso... Tua boca sem voz implora em um arquejo. Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto A maravilha astral dessa nudez sem pejo... E te amo como se ama um passarinho morto.