Raimundo Correia
Raimundo Correia (Raymundo Correia) ocupa um dos mais altos postos na poesia brasileira. Seu livro de estreia, Primeiros sonhos (1879) insere-se ainda no Romantismo. Já em Sinfonias (1883) nota-se o feitio novo que seria definitivo em sua obra o Parnasianismo. Segundo os cânones dessa escola, que estabelecem uma estética de rigor formal, ele foi um dos mais perfeitos poetas da língua portuguesa, formando com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac a famosa Trindade Parnasiana. Além de poesia, deixou obras de crítica, ensaio e crônicas.
Raimundo Correia
A Olavo Bilac Tu artista, com zelo, Esmerilha e investiga! Níssia, o melhor modelo Vivo, oferece, da beleza antiga. Para esculpi-la, em vão, árduos, no meio De esbraseada arena, Batem-se, quebram-se em fatal torneio, Pincel, lápis, buril, cinzel e pena. A Afrodite pagã, que o pejo afronta, Exposta nua do universo às vistas, Dos seios duros na marmórea ponta Amamentando gerações de artistas, Não na excede; e, ao contrário, em sua rica Nudez, por mil espelhos, Mostra o que ela não mostra, de pudica, Do colo abaixo e acima dos artelhos. Analisa-a, sagaz, linha por linha, E à tão sagaz minúcia apenas poupa Tudo o que se não vê, mas se adivinha Por sob a avara roupa... Deixa que a roupa avara Do peito o virginal tesoiro esconda, E o mais, até... onde, perfeita e clara, A barriga da perna se arredonda... Basta-te à vista esperta Revela-se, através do linho grosso, O alabastro da espádua mal coberta, E o Paros do pescoço. Basta que traia, como trai, de leve, O contorno flexuoso... Basta esse rosto ideal - púrpura e neve - E a curva grega do nariz gracioso. Um quase nada basta, enfim, que traia Ao teu olhar agudo, Para que este deduza, tire, extraia Daquele quase nada, quase tudo...
Raimundo Correia
Sonhei-te assim, ó minha amante, um dia: — Vi-te no céu; e, anamoradamente, De beijos, a falange resplendente Dos serafins, teu corpo inteiro ungia... Santos e anjos beijavam-te... Eu bem via Beijavam todos o teu lábio ardente; E, beijando-te, o próprio Onipotente, O próprio Deus nos braços te cingia! Nisto, o ciúme — fera que eu não domo — Despertou-me do sonho, repentino Vi-te a dormir tão plácida a meu lado... E beijei-te também, beijei-te... e, ai! como Achei doce o teu lábio purpurino. Tantas vezes assim no céu beijado!
Raimundo Correia
Adeus aos filtros da mulher bonita; A esse rosto espanhol, pulcro e moreno; Ao pé que no bolero... ao pé pequeno; Pé que, alígero e célere, saltita... Lira do amor, que o amor não mais excita, A um silêncio de morte eu te condeno; Despede-te; e um adeus, no último treno, Soluça às graças da gentil Conchita: A esses, que em ondas se levantam, seios Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados Olhos meridionais de ardência cheios; A esses lábios, enfim, de nácar vivo, Virgens dos lábios de outrem, mas corados Pelos beijos de um sol quente e lascivo.
Raimundo Correia
Homem, da vida as sombras inclementes Interrogas em vão: — Que céus habita Deus? Onde essa região de luz bendita, Paraíso dos justos e dos crentes?... Em vão tateiam tuas mãos trementes As entranhas da noite erma, infinita, Onde a dúvida atroz blasfema e grita, E onde há só queixas e ranger de dentes... A essa abóbada escura, em vão elevas Os braços para o Deus sonhado, e lutas Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas... Somente o vácuo estreitas em teus braços; E apenas, pávido, um ruído escutas, Que é o ruído dos teus próprios passos!...
Raimundo Correia
Dos revoltos lençóis sobre o deserto Despejava-se, em ondas silenciosas, O luar dessas noites vaporosas, De seu lânguido cálix todo aberto. Rangia a cama, e deslizavam, perto Alvas, femíneas formas ondulosas; E eu a idear, nas ânsias amorosas, Uns ombros nus, um colo descoberto. E a gemer: — "Abeirai-vos de meu leito, Ó sensuais visões da adolescência, E inflamai-vos na pira em que me inflamo! Fervem paixões despertas no meu peito; Descai a flor virgínea da inocência, E irrompe o fruto dolorido... Eu amo!
Raimundo Correia
Pela primeira vez, ímpias risadas Susta em prantos o deus da zombaria; Chora, e vingam-se dele, nesse dia, Os silvanos e as ninfas ultrajadas; Trovejam bocas mil escancaradas, Rindo; arrombam-se os diques da alegria, E estoira descomposta vozeria Por toda a selva, e apupos e pedradas. Fauno o indigita; a Náiade o caçoa; Sátiros vis, da mais indigna laia, Zombam. Não há quem dele se condoa! E Eco propaga a formidável vaia, Que além, por fundos boqueirões reboa, E, como um largo mar, rola e se espraia...