Álvaro de Campos
Foi criado em 1915. Diferente de Alberto Caeiro, que considera a sensação de forma saudável e tranquila, mas rejeita o pensamento, ou de Ricardo Reis, que advoga a indiferença olímpica, Campos procura a totalização das sensações, conforme as sente ou pensa, o que lhe causa tensões profundas.
Álvaro de Campos
Ah, a frescura na face de não cumprir um dever! Faltar é positivamente estar no campo! Que refúgio o não se poder ter confiança em nós! Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros. Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo, Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha. Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida. Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação. É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora, Deliberadamente à mesma hora... Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico. É tão engraçada esta parte assistente da vida! Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto, Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida. 17/06/1929
Álvaro de Campos
PASSAGEM DAS HORAS OU WALT WHITMAN Eu, o ritmista febril Para quem o parágrafo de versos é uma pessoa inteira, Para quem, por baixo da metáfora aparente, Como em estrofe, anti-estrofe, epodo o poema que escrevo, Que por detrás do delírio construo Que por detrás de sentir penso Que amo, expludo, rujo, com ordem e oculta medida, Eu ante ti quereria ter menos de engenheiro na alma, Menos de grego das máquinas, de Bacante de Apolo Nos meus momentos de alma multiplicados em verso. Mas o ar do mar alto Chega, por um influxo de dentro do meu sangue Ao meu cérebro desterrado em terra, E a fúria com que medito, a raiva com que me domino Abre-se como uma vela, tomada de vento, aos ares Ampla servidão ao rasgo de assombro dos (...)
Álvaro de Campos
BARROW-ON-FURNESS I Sou vil, sou reles, como toda a gente, Não tenho ideais, mas não os tem ninguém. Quem diz que os tem é como eu, mas mente. Quem diz que busca é porque não os tem. É com a imaginação que eu amo o bem. Meu baixo ser porém não mo consente. Passo, fantasma do meu ser presente, Ébrio, por intervalos, de um Além. Como todos não creio no que creio. Talvez possa morrer por esse ideal. Mas, enquanto não morro, falo e leio. Justificar-me? Sou quem todos são... Modificar-me? Para meu igual?... – Acaba lá com isso, ó coração! II Deuses, forças, almas de ciência ou fé. Eh! Tanta explicação que nada explica! Estou sentado no cais, numa barrica, E não compreendo mais do que de pé. Por que o havia de compreender? Pois sim, mas também por que o não havia? Água do rio, correndo suja e fria, Eu passo como tu, sem mais valer... Ó universo, novelo emaranhado, Que paciência de dedos de quem pensa Em outra coisa te põe separado? Deixa de ser novelo o que nos fica... A que brincar? Ao amor?, à indif'rença? Por mim, só me levanto da barrica. III Corre, raio de rio, e leva ao mar A minha indiferença subjectiva! Qual «leva ao mar»! Tua presença esquiva Que tem comigo e com o meu pensar? Lesma de sorte! Vivo a cavalgar A sombra de um jumento. A vida viva Vive a dar nomes ao que não se activa, Morre a pôr etiquetas ao grande ar... Escancarado Furness, mais três dias Te aturarei, pobre engenheiro preso A sucessibilíssimas vistorias... Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo (E tu irás do mesmo modo que ias), Qualquer, na gare, de cigarro aceso... IV Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo, Saiu-me certo, fui elogiado... Meu coração é um enorme estrado Onde se expõe um pequeno animálculo... A microscópio de desilusões Findei, prolixo nas minúcias fúteis... Minhas conclusões práticas, inúteis... Minhas conclusões teóricas, confusões... Que teorias há para quem sente O cérebro quebrar-se, como um dente Dum pente de mendigo que emigrou? Fecho o caderno dos apontamentos E faço riscos moles e cinzentos Nas costas do envelope do que sou... V Há quanto tempo, Portugal, há quanto Vivemos separados! Ah, mas a alma, Esta alma incerta, nunca forte ou calma, Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. Sonho, histérico oculto, um vão recanto... O rio Furness, que é o que aqui banha, Só ironicamente me acompanha, Que estou parado e ele correndo tanto... Tanto? Sim, tanto relativamente... Arre, acabemos com as distinções, As subtilezas, o interstício, o entre, A metafísica das sensações – Acabemos com isto e tudo mais... Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!
Álvaro de Campos
A liberdade, sim, a liberdade! A verdadeira liberdade! Pensar sem desejos nem convicções. Ser dono de si mesmo sem influência de romances! Existir sem Freud nem aeroplanos, Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço! A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! Como o luar quando as nuvens abrem A grande liberdade cristã da minha infância que rezava Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim... A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente, A noção jurídica da alma dos outros como humana, A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo! Passos todos passinhos de criança... Sorriso da velha bondosa... Apertar da mão do amigo [sério?]... Que vida que tem sido a minha! Quanto tempo de espera no apeadeiro! Quanto viver pintado em impresso da vida! Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote Da casa do campo da minha velha infância... Eu bebia e ele chiava, Eu era fresco e ele era fresco, E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre. Que é do púcaro e da inocência? Que é de quem eu deveria ter sido? E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, Ao luar e ao sonho, na estrada deserta, Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça, Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo, Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter, Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir? Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa, Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, nem consequência, Sempre, sempre, sempre, Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma, Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou no estrada da vida... Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante, Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram. Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita. Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo! Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas! Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou! À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada. À direita o campo aberto, com a lua ao longe. O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade, É agora uma coisa onde estou fechado, Que só posso conduzir se nele estiver fechado, Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim. À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto. A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. Talvez à criança espreitando pelo vidros da janela do andar que está em cima Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real. Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha No pavimento térreo, Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga, E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi. Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa? Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio? Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço, E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível, Acelero... Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo, À porta do casebre, O meu coração vazio, O meu coração insatisfeito, O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida. Na estrado de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante, Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação, Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim... 11/05/1928
Álvaro de Campos
Oh o maior horror de terem cessado os clarins Que sons indecisos nos traz o que substitui o vento Nesta profunda palidez [...] dos que mataram? Quem é que vem? O que nos vai dar Que criança a soluçar em calma noite intranquila, Meu irmão? A irmã de quem? Ó anos de infância Em que eu olhava da janela os soldados e via os uniformes E a sangrenta e carnal realidade das coisas não existia para mim!... Choque de cavaleiros onde? Artilharia, onde, onde, onde? Ó dor da [indecisão?] com agitações inexplicáveis à superfície de águas estagnadas... Ó murmúrio incompreensível da morte como que vento nas folhagens... Ó pavor certo de uma realidade desenhada pelos espelhos indecisos... (Lágrimas nas tuas mãos E plácido o teu olhar... E tu, amor, és uma realidade também... Ah, não ser tudo senão um quadro, um quadro qualquer... E quem sabe se tudo não será um quadro e a dor e a alegria E a incerteza e o terror Coisas, meras coisas, [...] Lágrimas nas tuas mãos, no terraço sobre o lago azul da montanha E lento o crepúsculo sobre os cumes altos das nossas duas almas E uma vontade de chorar a apertar-nos aos dois ao seu peito...) A guerra. a guerra, a guerra realmente. Excessivamente aqui, horror, a guerra real... Com a sua realidade de gente que vive realmente, Com a sua estratégia realmente aplicada a exércitos reais compostos de gente real E as suas consequências, não coisas contadas em livros Mas frias verdades, de estragos realmente humanos, mortes de quem morreu, na verdade, E o sol também real sobre a terra também real Reais em acto e a mesma merda no meio disto tudo! Verdade do perigo, dos mortos, dos doentes e das violações, E os sons florescem nos gritos misteriosamente... A gaiola do canário à tua janela, Maria, E o sussurro suave da água que gorgoleja no tanque... O corpo... E os outros corpos não muito diferentes deste, A morte... E o contrário disto tudo é a vida... Dói-me a alma e não compreendo... Custa-me a acreditar no que existe... Pálido e perturbado. não me mexo e sofro.
Álvaro de Campos
CLEARLY NON-CAMPOS! Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso, Que subitamente, como uma sufocação, me aflige O coração que, de repente, Entre o que vive, se esquece. Não sei qual é o sentimento Que me desvia do caminho, Que me dá de repente Um nojo daquilo que seguia, Uma vontade de nunca chegar a casa, Um desejo de indefinido, Um desejo lúcido de indefinido. Quatro vezes mudou a estação falsa No falso ano, no imutável curso Do tempo consequente; Ao verde segue o seco, e ao seco o verde, E não sabe ninguém qual é o primeiro, Nem o último, e acabam.
Álvaro de Campos
Para cantar-te, Para saudar-te Era preciso escrever aquele poema supremo, Onde, mais que em todos os outros poemas supremos, Vivesse, numa síntese completa feita de uma análise sem esquecimentos, Todo o Universo de coisas, de vidas e de almas, Todo o Universo de homens, mulheres, crianças, Todo o Universo de gestos, de actos, de emoções, de pensamentos, Todo o Universo das coisas que a humanidade faz, Das coisas que acontecem à humanidade — Profissões, leis, regimentos, medicinas, o Destino, Escrito a entrecruzamentos, a intersecções constantes No papel dinâmico dos Acontecimentos, No papiro rápido das combinações sociais, No palimpsesto das emoções renovadas constantemente.
Álvaro de Campos
Na noite terrível, substância natural de todas as noites, Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro, velando em modorra incómoda, Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida. Relembro, e uma angústia Espalha-se por mim como um frio do corpo ou um medo. O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver! Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão. Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte. Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures, Na ilusão do espaço e do tempo, Na falsidade do decorrer. Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei; O que só agora vejo que deveria ter feito, O que só agora claramente vejo que deveria ter sido – Isso é que é morto para além de todos os Deuses, Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver... Se em certa altura Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita; Se em certo momento Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim; Se em certa conversa Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro – Se tudo isso tivesse sido assim, Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro Seria insensivelmente levado a ser outro também. Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido, Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo; Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse; Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas, Claras, inevitáveis, naturais, A conversa fechada concludentemente, A matéria toda resolvida... Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói. O que falhei deveras não tem esperança nenhuma Em sistema metafísico nenhum. Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei. Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar? Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver. Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos, Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca Como uma verdade de que não partilho, E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim. 11/05/1928
Álvaro de Campos
P. DAS HORAS — Parte II — Grandes estandartes de fumo das chaminés das fábricas Sobre os telhados (...) Ó poderosamente gritos de combate! Vago rumor silencioso e comercial das ruas... E a ordem inconsciente dos que vão e vêm Pelas fitas dos passeios... À hora de sol em que as lojas descem os toldos
Álvaro de Campos
O sossego da noite, na vilegiatura no alto; O sossego, que mais aprofunda O ladrar esparso dos cães de guarda na noite; O silêncio, que mais se acentua, Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro... Ah, a opressão de tudo isto! Oprime como ser feliz! Que vida idílica, se fosse outra pessoa que o tivesse Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada Sob o céu sardento de estrelas, Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo! Vim para aqui repousar, Mas esqueci-me de me deixar lá em casa. Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente, A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir. Sempre esta inquietação mordida aos bocados Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo. Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta. Sempre, sempre, sempre Este defeito da circulação na própria alma, Esta lipotimia das sensações, Isto... Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas, Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada, Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra. Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço. Recordo para ter em que pensar, sem pensar. De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo. Olhaste conscientemente para mim, e disseste: «Tenho pena que todos os dias não sejam assim» – Assim, como aquele dia que não fora nada... Ah, não sabias, Felizmente não sabias, Que a pena é todos os dias serem assim, assim; Que o mal é que, feliz ou infeliz, A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo, Consciente ou inconscientemente, Pensando ou por pensar – Que a pena é essa... Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas, Molemente estendidas. Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti. Que será feito de ti? Sei que, no formidável algures da vida, Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz. Porque o não haverias de ser? Só por maldade... Sim, seria injusto... Injusto? (Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo). (...) A vida... Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.
Álvaro de Campos
E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo... — O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona de água, Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva, E a vasta humilhação de existir um amor taciturno — Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte, Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria — Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma — A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim. Meus versos são a minha impotência. O que não consigo, escrevo-o; E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia. A costureira estúpida violada por sedução, O marçano rato preso sempre pelo rabo, O comerciante próspero escravo da sua prosperidade — Não distingo, não louvo, não (...) — São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes. Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo, Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho, E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim. Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso — Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim. Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos, Bebedeira da servilidade altruísta, Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo...
Álvaro de Campos
Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se. Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo. Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina. 14/03/1931 (publicada na Presença, 2ª série, nº 1, Novembro de 1939)
Álvaro de Campos
Cruz na porta da tabacaria! Quem morreu? O próprio Alves? Dou Ao diabo o bem-estar que trazia. Desde ontem a cidade mudou. Quem era? Ora, era quem eu via. Todos os dias o via. Estou Agora sem essa monotonia. Desde ontem a cidade mudou. Ele era o dono da tabacaria. Um ponto de referência de quem sou Eu passava ali de noite e de dia. Desde ontem a cidade mudou. Meu coração tem pouca alegria, E isto diz que é morte aquilo onde estou. Horror fechado da tabacaria! Desde ontem a cidade mudou. Mas ao menos a ele alguém o via, Ele era fixo, eu, o que vou, Se morrer, não falto, e ninguém diria. Desde ontem a cidade mudou. 14/10/1930
Álvaro de Campos
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes – Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos. Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em véspera de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e é tudo deserto. Grande é a vida, e não vale a pena haver vida. Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem). Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo inteiro. Volta amanhã, realidade! Basta por hoje, gentes! Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim. Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro. E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. Mas tenho que arrumar a mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, o destino. Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei só que tenho que arrumar a mala, E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. Ergo-me de repente todos os Césares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la; Hei-de vê-la levar de aqui, Hei-de existir independentemente dela. Grandes são os desertos e tudo é deserto. Salvo erro, naturalmente. Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! Mais vale arrumar a mala. Fim. 04/10/1930
Álvaro de Campos
O bêbado caía de bêbado E eu, que passava, Não o ajudei, pois caía de bêbado, E eu só passava. O bêbado caiu de bêbado No meio da rua. E eu não me voltei, mas ouvi. Eu bêbado E a sua queda na rua. O bêbado caiu de bêbado Na rua da vida. Meu Deus! Eu também caí de bêbado Deus (...)
Álvaro de Campos
Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento, Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda. Adormeço sem dormir, ao relento da vida. É inútil dizer-me que as acções têm consequências. É inútil eu saber que as acções usam consequências. É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo. Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma. Tinha agora vontade De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado, De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo. Não vem com a tarde oportunidade nenhuma. 21/09/1930
Álvaro de Campos
DILUENTE A vizinha do número quatorze ria hoje da porta De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno. Ria naturalmente com a alma na cara. Está certo: é a vida. A dor não dura porque a dor não dura. Está certo. Repito: está certo. Mas o meu coração não está certo. O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida. Cá está a lição, ó alma da gente! Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu, Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim? Estou só no mundo, como um peão de cair. Posso morrer como o orvalho seca. Por uma arte natural de natureza solar, Posso morrer à vontade da deslembrança, Posso morrer como ninguém... Mas isto dói, Isto é indecente para quem tem coração... Isto... Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas... Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana? Apoteose ás avessas... Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!
Álvaro de Campos
Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido, Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une, A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea – Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma, Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem – Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração. 31/12/1929
Álvaro de Campos
Estou escrevendo sonetos regulares (Ou quase regulares) como um poeta... Mas se eu dissesse a alguém a dor completa Que me faz ter tais gestos e tais ares, (...) Ninguém acreditava. Ó grandes mares Da emoção subindo em névoa preta Até a mágoa ser como a do asceta. (...) Com um estalido de "mola de pressão" Fecho a carteira dos apontamentos Onde fixei a minha indecisão, Não sou meu ser, nem sou meus pensamentos, A minha vida é um príncipe ao balcão
Álvaro de Campos
Ah, a frescura na face de não cumprir um dever! Faltar é positivamente estar no campo! Que refúgio o não se poder ter confiança em nós! Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros. Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo, Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha. Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida. Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação. É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora, Deliberadamente à mesma hora... Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico. É tão engraçada esta parte assistente da vida! Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto, Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida. 17/06/1929