Álvaro de Campos
Foi criado em 1915. Diferente de Alberto Caeiro, que considera a sensação de forma saudável e tranquila, mas rejeita o pensamento, ou de Ricardo Reis, que advoga a indiferença olímpica, Campos procura a totalização das sensações, conforme as sente ou pensa, o que lhe causa tensões profundas.
Álvaro de Campos
Sem impaciência. Sem curiosidade, Sem atenção Vejo-o crochet que com ambas as mãos combinadas Fazes. Vejo-o do alto de um monte inexistente, Malha após malha formando pano... Qual é a razão que te dá entretenimento Às mãos e à alma essa coisa rala Por onde se pode meter um fósforo apagado? Mas também Qual é a razão que assiste a eu te criticar Nenhuma. Eu também tenho um crochet. Data de desde quando comecei a pensar... Malhas sobre malhas formando um todo sem todo Um pano que não sei se é para um vestido ou p'ra nada Uma alma que não sei se é para sentir ou viver... Olho-te com tanta atenção Que já nem dou por ti... Crochet, almas, filosofia... Todas as religiões do mundo... Tudo quanto nos entretém ao serão de sermos... Dois marfins, uma volta, o silêncio...
Álvaro de Campos
REGRESSO AO LAR (END OF THE BOOK) Há quanto tempo não escrevo um soneto. Mas não importa: escrevo este agora. Sonetos são infância, e, nesta hora, A minha infância é só um ponto preto, Que num imóvel e fatal trajecto Do comboio que sou me deita fora. E o soneto é como alguém que mora Há dois dias em tudo que projecto. Graças a Deus, ainda sei que há Catorze linhas a cumprir iguais Para a gente saber onde é que está... Mas onde a gente está, ou eu, não sei... Não quero saber mais de nada mais E berdamerda para o que saberei.
Álvaro de Campos
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes – Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos. Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em véspera de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e é tudo deserto. Grande é a vida, e não vale a pena haver vida. Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem). Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo inteiro. Volta amanhã, realidade! Basta por hoje, gentes! Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim. Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro. E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. Mas tenho que arrumar a mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala. Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, o destino. Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei só que tenho que arrumar a mala, E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. Ergo-me de repente todos os Césares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la; Hei-de vê-la levar de aqui, Hei-de existir independentemente dela. Grandes são os desertos e tudo é deserto. Salvo erro, naturalmente. Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! Mais vale arrumar a mala. Fim. 04/10/1930
Álvaro de Campos
Por aqueles, minha mãe, que morreram, que caíram na batalha... Dlôn — ôn — ôn — ôn... Por aqueles, minha mãe, que ficaram mutilados no combate Dlôn — ôn — ôn — ôn... Por aqueles cuja noiva esperará sempre em vão... Dlôn — ôn — ôn — ôn... Sete vezes sete vezes murcharão as flores no jardim Dlôn — ôn — ôn — ôn... E os seus cadáveres serão do pó universal e anónimo Dlôn — ôn — on — on... E eles, quem sabe, minha mãe, sempre vivos [...] com esperança... Loucos, minha mãe, loucos, porque os corpos morrem e a dor não morre... Dlôn — dlôn — dlôn — dlôn — dlôn — dlôn... Que é feito daquele que foi a criança que tiveste ao peito? Dlôn... Quem sabe qual dos desconhecidos monos ai é o teu filho Dlôn... Ainda tens na gaveta da cómoda os seus bibes de criança... Ainda há nos caixotes da dispensa os seus brinquedos velhos... Ele hoje pertence a uma podridão [...] in France. Ele que foi tanto para ti, tudo, tudo, tudo... Olha, ele não é nada no geral holocausto da história Dlôn — dlôn... Dlôn — dlôn — dlôn — dlôn... Dlôn — dlôn — dlôn — dlôn... Dlôn — dlôn — dlôn — dlôn — dlôn — dlôn...
Álvaro de Campos
II. Carnaval A vida é uma tremenda bebedeira. Eu nunca tiro dela outra impressão. Passo nas ruas, tenho a sensação De um carnaval cheio de cor e poeira... A cada hora tenho a dolorosa Sensação, agradável todavia, De ir aos encontrões trás a alegria Duma plebe farsante e copiosa... Cada momento é um carnaval imenso, Em que ando misturado sem querer. Se penso nisto maça-me viver E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça Dentro a quem quer parar um só momento Em ver o que é que faz ao pensamento Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça... Automóveis, veículos, (...) As ruas cheias, (...) Fitas de cinema correndo sempre E nunca tendo um sentido preciso. Julgo-me bêbado, sinto-me confuso, Cambaleio nas minhas sensações, Sinto uma súbita falta de corrimões No pleno dia da cidade (...) Uma pândega esta existência toda... Que embrulhada se mete por mim dentro E sempre em mim desloca o ciente centro Do meu psiquismo, que anda sempre à roda... E contudo eu estou como ninguém De Amoroso acordo com isto tudo... Não encontro em mim, quando em estudo, Diferença entre mim e isto que tem Esta balbúrdia de carnaval tolo, Esta mistura de europeu e zulu Este batuque tremendo e chulo E elegantemente em desconsolo... Que tipos! Que agradáveis e antipáticos! Como eu sou deles com um nojo a eles! O mesmo tom europeu em nossas peles E o mesmo ar conjuga-nos (...) Tenho às vezes o todo de ser eu Com esta forma de hoje e estas maneiras... Gasto inúteis horas inteiras A descobrir quem sou e nunca deu Resultado a pesquisa... Se há um plano Que eu forme, na vida que talho para mim Antes que eu chegue desse plano ao fim Será estar como antes fora dele. É engano A gente ter confiança em quem tem ser... (...)
Álvaro de Campos
Minha oração-cavalgada! Minha saudação-arranco! Quem como tu sentiu a vida individual de tudo? Quem como tu esgotou sentir-se — a vida — sentir-nos? Quem como tu tem sempre o sobresselente por próprio E transborda por norma da norma — forma da Vida? (...) a minha alegria é uma raiva, o meu arranco um choque (Pá!) em mim... Saúdo-te em ti ó Mestre da minha doença de saúde, o primeiro doente perfeito da universalite que tenho o caso-nome do “mal de Whitman” que há dentro de mim! St. Walt dos Delírios Ruidosos e a Raiva!
Álvaro de Campos
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos, E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício. A minha vida passada misturou-se com a futura, E houve no meio um ruído do salão de fumo, Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez. Ah, balouçado Na sensação das ondas, Ah, embalado Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã, De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas, De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali, Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse. Ah, afundado Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono, Irrequieto tão sossegadamente, Tão análogo de repente à criança que fui outrora Quando brincava na quinta e não sabia álgebra, Nem as outras álgebras com x e ys de sentimento. Ah, todo eu anseio Por esse momento sem importância nenhuma Na minha vida, Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos --- Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma, Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.
Álvaro de Campos
SAUDAÇÂO A W. WHITMAN Para cantar-te, Para cantar-te como tu quererias que te cantassem, Melhor é cantar a terra, o mar, as cidades e os campos — Os homens, as mulheres, as crianças, As profissões, [...], as (...) Todas as coisas que, juntas, formam a síntese-universo, Todas as coisas que, separadas, valem a síntese-Universo, Todas as coisas que universais formam a síntese Deus. Ah, o poema que te cantasse bem, Seria o poema que todo cantasse tudo, O poema em que estivessem todas as vestes e todas as sedas — Todos os perfumes e todos os sabores E o contacto em todos os sentidos do tacto de todas as coisas tangíveis. Poema que dispensasse a música, música com vida, Poema que transcendesse a pintura, pintura com alma
Álvaro de Campos
A Praça da Figueira de manhã, Quando o dia é de sol (como acontece Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece, Embora seja uma memória vã. Há tanta coisa mais interessante Que aquele lugar lógico e plebeu! Mas amo aquilo, mesmo assim... Sei eu Porque o amo? Não importa nada... Adiante! Isto de sensações só vale a pena Se a gente se não põe a olhar para elas. Nenhuma delas em mim é serena... De resto, nada em mim é certo e está De acordo consigo próprio... As horas belas São as dos outros, ou as que não há. Londres (uns cinco meses antes do Opiário) Outubro 1913
Álvaro de Campos
Vendi-me de graça aos casuais do encontro. Amei onde achei, um pouco por esquecimento. Fui saltando de intervalo em intervalo E assim cheguei a onde cheguei na vida. Hoje, recordando o passado Não encontro nele senão quem não Fui... A criança inconsciente na casa que cessaria, A criança maior errante na casa das tias já mortas, O adolescente inconsciente ao cuidado do primo padre tratado por tio, O adolescente maior enviado para o estrangeiro (mania do tutor novo). O jovem inconsciente estudando na Escócia, estudando na Escócia... O jovem inconsciente já homem cansado de estudar na Escócia. O homem inconsciente tão diverso e tão estúpido de depois... Não tendo nada de comum com o que foi, Não tendo nada de igual com o que penso, Não tendo nada de comum com o que poderia ter sido. Eu... Vendi-me de graça e deram-me feijões por troco Os feijões dos jogos de mesa da minha infância varrida.
Álvaro de Campos
Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento, Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda. Adormeço sem dormir, ao relento da vida. É inútil dizer-me que as acções têm consequências. É inútil eu saber que as acções usam consequências. É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo. Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma. Tinha agora vontade De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado, De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo. Não vem com a tarde oportunidade nenhuma. 21/09/1930
Álvaro de Campos
Não será melhor Não fazer nada? Deixar tudo ir de escantilhão pela vida abaixo Para um naufrágio sem água? Não será melhor Colher coisa nenhuma Nas roseiras sonhadas, E jazerei quieto, a pensar no exílio dos outros, Nas primaveras por haver? Não será melhor Renunciar, como um rebentar de bexigas populares Na atmosfera das feiras, A tudo Sim, a tudo, Absolutamente a tudo?
Álvaro de Campos
Quando olho para mim não me percebo. Tenho tanto a mania de sentir Que me extravio às vezes ao sair Das próprias sensações que eu recebo. O ar que respiro, este licor que bebo Pertencem ao meu modo de existir, E eu nunca sei como hei-de concluir As sensações que a meu pesar concebo. Nem nunca, propriamente, reparei Se na verdade sinto o que sinto. Eu Serei tal qual pareço em mim? serei Tal qual me julgo verdadeiramente? Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu, Nem sei bem se sou eu quem em mim sente. Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913
Álvaro de Campos
Ah! Ser indiferente! É do alto do poder da sua indiferença Que os chefes dos chefes dominam o mundo. Ser alheio até a si mesmo! É do alto do sentir desse alheamento Que os mestres dos santos dominam o mundo. Ser esquecido de que se existe! É do alto do pensar desse esquecer Que os deuses dos deuses dominam o mundo. (Não ouvi o que dizias... ouvi só a musica, e nem a essa ouvi... Tocavas e falavas ao mesmo tempo? Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo... Com quem? Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...
Álvaro de Campos
Não, não é cansaço... É uma quantidade de desilusão Que se me entranha na espécie de pensar. É um domingo às avessas Do sentimento, Um feriado passado no abismo... Não, cansaço não é... É eu estar existindo E também o mundo, Com tudo aquilo que contém, Como tudo aquilo que nele se desdobra E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Álvaro de Campos
Ah, de que serve A arte que quer ser vida, sem a vida que quer ser? De que serve a arte se não é a arte que queremos? De que nos serve a vida se a queremos e não a buscamos, Se nunca é para nós a vida? Ah, p'ra saudar-te Era preciso o coração Da terra toda... O corpo-espírito das coisas,
Álvaro de Campos
ODE MORTAL Tu, Caeiro meu mestre, qualquer que seja o traje Com que vestes agora, distante ou próxima, a essência Da tua alma universal localizada, Do teu corpo divino intelectual... Viste com a tua cegueira perfeita, sobre o não ver... Porque o que viste com os teus dedos mortais e admiráveis Foi a face sensível e não a face física das coisas Foi a realidade, e não o real. Porque a verdade que é tudo é só a verdade que há em tudo, E a verdade que há em tudo é a verdade que o mostra! Ah, sem cansaço antecipado da marcha Nem cadáver velado pelo próprio cadáver na alma Nas noites em que o vento assobie no mundo deserto E a casa onde dorme é um túmulo de tudo, Nem o sentir-se morto impossivelmente sentindo-se cadáver, Nem a consciência de não ter consciência dentro de tábuas e chumbo, Nem nada... Olho o céu de dia, e olho o céu de noite – E este universo esférico e côncavo Vejo-o como um espelho dentro do qual vivamos, Limitado porque é a parte de dentro, Mas com estrelas e sol rasgando o vidro Para fora, para o convexo que é infinito. Gritai de alegria, gritai comigo, gritai, Coisas cheias, sobre-cheias, Que sois minha vida turbilhonante... Eu vou sair da esfera oca Não por uma estrela, mas pela luz de uma estrela... Vou para o espaço real... Que o espaço, cá dentro é espaço que está fechado E só parece infinito por estar fechado muito longe... Muito longe em pensá-lo... A minha mão está já no puxador-luz. Vou abrir com um gesto largo, Com um gesto autêntico e mágico A Porta para o Convexo, A janela para o Informe, A Razão para o maravilhoso definitivo. Vou poder circumnavegar por fora este dentro Que tem as estrelas no fim, vou ter o céu Por baixo do sobrado curvo – Tecto da cave das coisas reais, Da abóbada nocturna da morte e da vida... Vou partir para FORA, Para o Arredor Infinito, Para a circunferência exterior, metafísica, Para a luz por fora da noite, Para a Vida-morte por fora da Morte-Vida. E aí, no Verdadeiro, Tirarei os astros e a vida da algibeira como um presente ao Certo, Lerei a Vida de novo, como uma carta guardada E então, com luz melhor, perceberei a letra e saberei. O cais está cheio de gente a ver-me partir. Mas o cais é à minha volta e eu encho o navio. E o mar é cama, caixão, sepultura... E eu não sei o que sou pois já não estou ali... E eu, que cantei A civilização moderna, aliás igual às antigas, As coisas do meu tempo só porque esse tempo foi meu, As máquinas, os motores, Vou em diagonal a tudo para cima. Passo pelos interstícios de tudo, E como um pó sem ser rompo o invólucro E partirei, globe-trotter do Divino, Quantas vezes, quem sabe?, regressando ao mesmo ponto. (Quem anda de noite que sabe do andar e da noite?), Levarei na sacola o conjunto do visto – O céu de estrelas, e o sol em todos os modos, E todas as estações e as suas milhares de cores, E os campos, e as serras, e as terras que cessam em praias, E o mar para além, e o para além do mar que há além. E de repente se abrirá a Última Porta das coisas E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim. E será o Inesperado que eu esperava O Desconhecido que eu conheci sempre – O único que eu sempre conheci, (...) 12/01/1927
Álvaro de Campos
Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões. Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles? Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo. Quero respirar o ar sozinho, Não tenho pulsações em conjunto, Não sinto em sociedade por quotas, Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim. Onde quero dormir? No quintal... Nada de paredes — ser o grande entendimento — Eu e o universo, E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos, O grande abismo infinito para cima A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara, Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo. Não quero! Dêem-me a liberdade! Quero ser igual a mim mesmo. Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras! Não me façam elogiável ou inteligível! Não me matem em vida! Quero saber atirar com essa bola alta à lua E ouvi-la cair no quintal do lado! Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... " Amanhã vou buscá-la ao quintal" Buscá-la ao quintal Ao quintal ao lado...
Álvaro de Campos
Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido, Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une, A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea – Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma, Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem – Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração. 31/12/1929
Álvaro de Campos
ODE MARCIAL Ai de ti, ai de ti, ai de nós! Por detrás destas leis inexplicáveis, foges da vida Haverá alguma ternura divina que compense isto tudo? Ainda tens o berço dele a um canto, em casa... Ainda tens guardados os fatinhos dele, de pequeno... Ainda tens numa gaveta alguns brinquedos partidos... Agora, sim, agora, vai olhá-los e chora sobre eles... Não sabes onde é a sepultura do teu filho... Foi o n.º qualquer coisa do regimento um tal, Morreu lá para a [...] em qualquer parte... morreu... O filho que tu tiveste ao peito, que amamentaste e que criaste... Que remexera no teu ventre... O rapazote feito que dizia graças e tu rias tanto... Agora ele é podridão... Bastou em linha alemã Um bocado de chumbo, do tamanho dum prego, e a tua vida é triste... Receberas um prémio do [Estado?]. Disse que o teu filho foi um herói... (Ninguém sabe, de resto, se ele foi herói ou não) É um enigma p'ra a história... “Morreram 20, cem homens na batalha de tal...” Ele era um deles... E o teu coração de mãe sangrou tanto por esse herói de que a história não disse nada... O acontecimento mais importante da guerra foi aquele para ti...
Álvaro de Campos
ODE "A PARTIDA" (excertos) Grande libertador, Que quebraste as algemas de todas as mortes – as do corpo e as da alma A morte, a doença, a tristeza A arte, e a ciência, e a filosofia... Grande libertador Que arrasaste os muros da cadeia velha E fizeste ruir os andaimes da cadeia nova, Que abriste de par em par as janelas todas Nas salas todas de todas as casas, E o vento real limpou do fumo e do sono As salas dadas aos prazeres dos sonhos, ...................................................... Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro, Grande Libertador, volto submisso a ti. Sem dúvida teve um fim a minha personalidade. Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa. Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica – Não ter tido a tua calma superior a ti próprio, A tua libertação constelada de Noite Infinita. Não tive talvez missão alguma na terra, ........................................................... Ah, se todo este mundo claro, e estas flores e luz, Se todo este mundo com terra e mar e casas e gente, Se todo este mundo natural, social, intelectual, Estes corpos nus por baixo das vestes naturais, Se isto é ilusão, por que é que isto está aqui? Ó mestre Caeiro, só tu é que tinhas razão! Se isto não é, por que é que é? Se isto não pode ser, então porque pôde ser? Acolhei-a, ao chegar, A ela, à Morte, a esse erro da vista, Com os cheiros dos campos, e as flores cortadas trazidas ao colo, Com as romarias e as tardes pelas estradas, Com os ranchos festivos, e os lares contentes, Com a alegria e a dor, com o prazer e a mágoa, Com todo o vasto mar movimentado da vida. Acolhei-a sem medo, Como quem na estação de província, no apeadeiro campestre, Acolhe o viajante que há-de chegar no comboio do Além. Acolhei-a contentes, Crianças cantando de riso, corpos de jovens nos jogos, Alegria rude e natural das tabernas. E os braços e os beijos e os seios das raparigas. .................................................... Da casa do monte, símbolo eterno e perfeito, Vejo os campos, os campos todos, E eu os saúdo por fim com a voz verdadeira, Eu lhes dou vivas, chorando, com as lágrimas certas e os vivas exactos Eu os aperto a meu peito, como filho que encontrasse o pai perdido. Vivam, vivam, vivam Os montes, e a planície, e as ervas! Vivam os rios, vivam as fontes! Vivam as flores, e as árvores, e as pedras! Vivam os entes vivos – os bichos pequenos, Os bichos que correm, insectos e aves, Os animais todos, tão reais sem mim, Os homens, as mulheres, as crianças, As Famílias, e as não-famílias, igualmente! Tudo quanto sente sem saber porquê! Tudo quanto vive sem pensar que vive! Tudo que acaba e cessa sem angústia nem nada, Sabendo, melhor que eu, que nada há que temer, Que nada é fim, que nada é abismo, que nada é mistério, E que tudo é Deus, e que tudo é Ser, e que tudo é Vida. Ah, estou liberto! Ah, quebrei todas As algemas do pensamento. Eu, o claustro e a cave voluntários de mim mesmo, Eu o próprio abismo que sonhei, Eu, que vi em tudo caminhos e atalhos de sombra E a sombra e os caminhos e os atalhos estavam em mim! Ah, estou liberto... Mestre Caeiro, voltei à tua casa do monte E vi a verdade que vias, mas com meus olhos, Verdadeiramente com meus olhos, Verdadeiramente verdade. Ah, vi que não há morte alguma! Vi que Não há abismos! Nada é sinistro! Não há mistério ou verdade! Não há Deus, nem vida, nem alma distinta da vida! Tu, tu Mestre Caeiro, tu é que tinhas razão! Mas ainda não viste tudo, tudo é mais ainda! Alegre cantaste a alegria de tudo, Mas sem pensá-lo tu sentias Que é porque a alegria de tudo é essencialmente imortal. Como cantaras alegre a morte futura Se a puderas pensar como morte, Se deveras sentiras a noite e o acabamento? Não, não: tu sabias Não com teu pensamento, mas com teu corpo inteiro, Com todos os teus sentidos tão acordados ao mundo Que não há nada que morra, que não há coisa que cesse, Que cada momento não passa nunca, Que a flor colhida fica sempre na haste, Que o beijo dado é eterno, Que na essência e universo das coisas, Tudo é alegria e sol E só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra. Embandeira a canto e rosas! E da estação de província, do apeadeiro campestre Lá vem o comboio! Com lenços agitados, com olhos que brilham eternos Saudemos em ouro e flores a morte que chega! ................................
Álvaro de Campos
Abram todas as portas! Partam os vidros das janelas! Omitam fechos na vida de fechar! Omitam a vida de fechar da vida de fechar! Que fechar seja estar aberto sem fechos que lembrem, Que parar seja o nome alvar de prosseguir, Que o fim seja sempre uma coisa abstracta e ligada Fluida a todas as horas de passar por ele! Eu quero respirar! Dispam-me o peso do meu corpo! Troquem a alma por asas abstractas, ligadas a nada! Nem asas, mas a Asa enorme de Voar! Nem Voar mas o que fica de veloz quando cessar é voar E não há corpo que pese na alma de ir! Seja eu o calor das coisas vivas, a febre Das seivas, o ritmo das ondas e o (...) Intervalo em Ser para deixar Ser ser...! Fronteiras em nada! Divisões em nada! Só Eu