Joaquim Maria Machado de Assis
Em nosso site, você encontrará uma seleção cuidadosa dos poemas de Joaquim Maria Machado de Assis, uma oportunidade única para mergulhar na mente brilhante deste autor visionário. Cada verso é uma joia literária, uma peça do quebra-cabeça da experiência humana que Machado de Assis tão habilmente montou. Convidamos você a explorar as páginas do mil frases.com e se deixar envolver pelo poder da poesia de Machado de Assis. Permita que suas palavras ecoem em sua mente, tocando seu coração e expandindo seus horizontes. Aprecie a grandiosidade literária deste gigante da escrita, e deixe-se inspirar por sua visão única do mundo. Sua jornada poética está apenas começando, e temos a certeza de que você encontrará um tesouro de beleza e significado ao explorar as obras atemporais deste renomado autor brasileiro.
Joaquim Maria Machado de Assis
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!" Mas a lua, fitando o sol, com azedume: "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?" Publicado no livro Poesias Completas (1901). Poema integrante da série Ocidentais.
Joaquim Maria Machado de Assis
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão. Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada. Em certa noite de verão. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua — melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão-Mogol. Um poleá que a viu, espantado e tristonho, Um poleá lhe perguntou: — "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que te ensinou?" Então ela, voando e revoando, disse: — "Eu sou a vida, eu sou a flor Das graças, o padrão da eterna meninice, E mais a glória, e mais o amor". E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo E tranqüilo, como um faquir, Como alguém que ficou deslembrado de tudo, Sem comparar, nem refletir. Entre as asas do inseto a voltear no espaço, Uma coisa me pareceu Que surdia, com todo o resplendor de um paço, Eu vi um rosto que era o seu. Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o colo nu Um imenso colar de opala, e uma safira Tirada ao corpo de Vixnu. Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, Aos pés dele, no liso chão, Espreguiçam sorrindo as suas graças finas, E todo o amor que têm lhe dão. Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios, Com grandes leques de avestruz, Refrescam - lhes de manso os aromados seios. Voluptuosamente nus. Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos, E enfim as páreas triunfais De trezentas nações, e os parabéns unidos Das coroas ocidentais. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em água que deixa o fundo descoberto, Via limpos os corações. Então ele, estendendo a mão calosa e tosca. Afeita a só carpintejar, Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. E, fechando - a na mão, sorriu De contente, ao pensar que ali tinha um império, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupação Miudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua ilusão. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baça, nojenta, vil Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Visão fantástica e sutil. Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo Na cabeça, com ar taful Dizem que ensandeceu e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul.
Joaquim Maria Machado de Assis
A M. Ferreira Guimarães (1863) Dous horizonte fecham nossa vida: Um horizonte, — a saudade Do que não há de voltar; Outro horizonte, — a esperança Dos tempos que hão de chegar; No presente, — sempre escuro, — Vive a alma ambiciosa Na ilusão voluptuosa Do passado e do futuro. Os doces brincos da infância Sob as asas maternais, O vôo das andorinhas, A onda viva e os rosais. O gozo do amor, sonhado Num olhar profundo e ardente, Tal é na hora presente O horizonte do passado. Ou ambição de grandeza Que no espírito calou, Desejo de amor sincero Que o coração não gozou; Ou um viver calmo e puro À alma convalescente, Tal é na hora presente O horizonte do futuro. No breve correr dos dias Sob o azul do céu, — tais são Limites no mar da vida: Saudade ou aspiração; Ao nosso espírito ardente, Na avidez do bem sonhado, Nunca o presente é passado, Nunca o futuro é presente. Que cismas, homem? — Perdido No mar das recordações, Escuto um eco sentido Das passadas ilusões. Que buscas, homem? — Procuro, Através da imensidade, Ler a doce realidade Das ilusões do futuro. Dous horizontes fecham nossa vida.
Joaquim Maria Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno, — Ao relembrar os dias de pequeno, E a viva dança, e a lépida cantiga, Quis transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua idade antiga, Naquela mesma velha noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto . . . A folha branca Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, A pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, Só lhe saiu este pequeno verso: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
Joaquim Maria Machado de Assis
Noite: abrem-se as flores . . . Que esplendores! Cíntia sonha seus amores Pelo céu. Tênues as neblinas Às campinas Descem das colinas, Como um véu. Mãos em mãos travadas, Animadas, Vão aquelas fadas Pelo ar; Soltos os cabelos, Em novelos, Puros, louros, belos, A voar. — "Homem, nos teus dias Que agonias, Sonhos, utopias, Ambições; Vivas e fagueiras, As primeiras, Como as derradeiras Ilusões! — "Quantas, quantas vidas Vão perdidas, Pombas mal feridas Pelo mal! Anos após anos, Tão insanos, Vêm os desenganos Afinal. — "Dorme: se os pesares Repousares, Vês? — por estes ares Vamos rir; Mortas, não; festivas, E lascivas, Somos — horas vivas De dormir. —"
Joaquim Maria Machado de Assis
OCORREU-ME compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez. Art. I – Dos encatarroados Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc. Art. II – Da posição das pernas As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação. Art. III – Da leitura dos jornais Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente. Art. IV – Dos quebra-queixos É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: – a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer. Art. V – Dos amoladores Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a nar-r3ção, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra. Art. VI – Dos perdigotos Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua. Art. VII – Das conversas Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras. Art. VIII – Das pessoas com morrinha As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela. Art. IX – Da passagem às senhoras Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação. Art. X – Do pagamento Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa. ASSIS, Machado de. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3. p. 414-416. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira). NOTAS: Quebra-queixos. Neste caso, charutos ou cigarros ordinários. Pespegá-los. Dá-los com violência. Morrinha. Mau-cheiro ou sarna
Joaquim Maria Machado de Assis
Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descansas dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs o mundo inteiro. Trago-te flores - restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos. Machado de Assis, 1906
Joaquim Maria Machado de Assis
A Ernesto Cibrão Está naquela idade inquieta e duvidosa, Que não é dia claro e é já o alvorecer; Entreaberto botão, entrefechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher. Às vezes recatada, outras estouvadinha, Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor; Tem cousas de criança e modos de mocinha, Estuda o catecismo e lê versos de amor. Outras vezes valsando, o seio lhe palpita, De cansaço talvez, talvez de comoção. Quando a boca vermelha os lábios abre e agita, Não sei se pede um beijo ou faz uma oração. Outras vezes beijando a boneca enfeitada, Olha furtivamente o primo que sorri; E se corre parece, à brisa enamorada, Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri. Quando a sala atravessa, é raro que não lance Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance Em que a dama conjugue o eterno verbo amar. Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia, A cama da boneca ao pé do toucador; Quando sonha, repete, em santa companhia, Os livros do colégio e o nome de um doutor. Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra; E quando entra num baile, é já dama do tom; Compensa-lhe a modista os enfados da mestra; Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon. Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo Para ela é o estudo, excetuando-se talvez A lição de sintaxe em que combina o verbo To love, mas sorrindo ao professor de inglês. Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço, Parece acompanhar uma etérea visão; Quantas cruzando ao seio o delicado braço Comprime as pulsações do inquieto coração! Ah! se nesse momento, alucinado, fores Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã, Hás de vê-la zombar de teus tristes amores, Rir da tua aventura e contá-la à mamã. É que esta criatura, adorável, divina, Nem se pode explicar, nem se pode entender: Procura-se a mulher e encontra-se a menina, Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
Joaquim Maria Machado de Assis
Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas? Além desses outeiros Vai descambando o sol, e à terra envia Os raios derradeiros; A tarde, como noiva que enrubesce, Traz no rosto um véu mole e transparente; No fundo azul a estrela do poente Já tímida aparece. Como um bafo suavíssimo da noite, Vem sussurrando o vento, As árvores agita e imprime às folhas O beijo sonolento. A flor ajeita o cálix: cedo espera O orvalho, e entanto exala o doce aroma; Do leito do oriente a noite assoma; Como uma sombra austera. Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos, Vem, minha flor querida; Vem contemplar o céu, página santa Que o amor a ler convida; Da tua solidão rompe as cadeias; Desde o teu sombrio e mudo asilo; Encontrarás aqui o amor tranqüilo. .. Que esperas? que receias? Olha o templo de Deus, pomposo e grande; Lá do horizonte oposto A lua, como lâmpada, já surge A alumiar teu rosto; Os círios vão arder no altar sagrado, Estrelinhas do céu que um anjo acende; Olha como de bálsamos rescende A c'roa do noivado. Irão buscar-te em meio do caminho As minhas esperanças; E voltarão contigo, entrelaçadas Nas tuas longas tranças; No entanto eu preparei teu leito à sombra Do limoeiro em flor; colhi contente Folhas com que alastrei o solo ardente De verde e mole alfombra. Pelas ondas do tempo arrebatados, Até à morte iremos, Soltos ao longo do baixel da vida Os esquecidos remos. Firmes, entre o fragor da tempestade, Gozaremos o bem que amor encerra, Passaremos assim do sol da terra Ao sol da eternidade. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.48-49. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série brasileira
Joaquim Maria Machado de Assis
Já raro e mais escasso A noite arrasta o manto, E verte o último pranto Por todo o vasto espaço. Tíbio clarão já cora A tela do horizonte, E já de sobre o monte Vem debruçar-se a aurora À muda e torva irmã, Dormida de cansaço, Lá vem tomar o espaço A virgem da manhã. Uma por uma, vão As pálidas estrelas, E vão, e vão com elas Teus sonhos, coração. Mas tu, que o devaneio Inspiras do poeta, Não vês que a vaga inquieta Abre-te o úmido seio? Vai. Radioso e ardente, Em breve o astro do dia, Rompendo a névoa fria, Virá do roxo oriente. Dos íntimos sonhares Que a noite protegera, De tanto que eu vertera. Em lágrimas a pares. Do amor silencioso. Místico, doce, puro, Dos sonhos do futuro, Da paz, do etéreo gozo, De tudo nos desperta Luz de importuno dia; Do amor que tanto a enchia Minha alma está deserta. A virgem da manhã Já todo o céu domina . . . Espero-te, divina, Espero-te, amanhã.
Joaquim Maria Machado de Assis
Eu conheço a mais bela flor; És tu, rosa da mocidade, Nascida aberta para o amor. Eu conheço a mais bela flor. Tem do céu a serena cor, E o perfume da virgindade. Eu conheço a mais bela flor, És tu, rosa da mocidade. Vive às vezes na solidão, Como filha da brisa agreste. Teme acaso indiscreta mão; Vive às vezes na solidão. Poupa a raiva do furacão Suas folhas de azul celeste. Vive às vezes na solidão, Como filha da brisa agreste. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno; Que a flor morta já nada val. Colhe-se antes que venha o mal. Quando a terra é mais jovial Todo o bem nos parece eterno. Colhe-se antes que venha o mal, Colhe-se antes que chegue o inverno.
Joaquim Maria Machado de Assis
O poeta chegara ao alto da montanha, E quando ia a descer a vertente do oeste, Viu uma cousa estranha, Uma figura má. Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, Num tom medroso e agreste Pergunta o que será. Como se perde no ar um som festivo e doce, Ou bem como se fosse Um pensamento vão, Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. Para descer a encosta O outro lhe deu a mão.
Joaquim Maria Machado de Assis
Je veux changer mes pensées en oiseaux. C. MAROT Olha como, cortando os leves ares, Passam do vale ao monte as andorinhas; Vão pousar na verdura dos palmares, Que, à tarde, cobre transparente véu; Voam também como essas avezinhas Meus sombrios, meus tristes pensamentos; Zombam da fúria dos contrários ventos, Fogem da terra, acercam-se do céu. Porque o céu é também aquela estância Onde respira a doce criatura, Filha do nosso amor, sonho da infância, Pensamento dos dias juvenis. Lá, como esquiva flor, formosa e pura, Vives tu escondida entre a folhagem, Ó rainha do ermo, ó fresca imagem Dos meus sonhos de amor calmo e feliz! Vão para aquela estância enamorados, Os pensamentos de minh'alma ansiosa; Vão contar-lhe os meus dias gozados E estas noites de lágrimas e dor. Na tua fronte pousarão, mimosa, Como as aves no cimo da palmeira, Dizendo aos ecos a canção primeira De um livro escrito pela mão do amor. Dirão também como conservo ainda No fundo de minh'alma essa lembrança De tua imagem vaporosa e linda, Único alento que me prende aqui. E dirão mais que estrelas de esperança Enchem a escuridão das noites minhas. Como sobem ao monte as andorinhas, Meus pensamentos voam para ti. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 v.3, p.51-52. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
Joaquim Maria Machado de Assis
Eras pálida. E os cabelos, Aéreos, soltos novelos, Sobre as espáduas caíam. .. Os olhos meio-cerrados De volúpia e de ternura Entre lágrimas luziam. .. E os braços entrelaçados, Como cingindo a ventura, Ao teu seio me cingiram. .. Depois, naquele delírio, Suave, doce martírio De pouquíssimos instantes Os teus lábios sequiosos, Frios trêmulos, trocavam Os beijos mais delirantes, E no supremo dos gozos Ante os anjos se casavam Nossas almas palpitantes. .. Depois. .. depois a verdade, A fria realidade, A solidão, a tristeza; Daquele sonho desperto, Olhei. .. silêncio de morte Respirava a natureza — Era a terra, era o deserto, Fora-se o doce transporte, Restava a fria certeza. Desfizera-se a mentira: Tudo aos meus olhos fugira; Tu e o teu olhar ardente, Lábios trêmulos e frios, O abraço longo e apertado, O beijo doce e veemente; Restavam meus desvarios, E o incessante cuidado, E a fantasia doente. E agora te vejo. E fria Tão outra estás da que eu via Naquele sonho encantado! És outra, calma, discreta, Com o olhar indiferente, Tão outro do olhar sonhado, Que a minha alma de poeta Não vê se a imagem presente Foi a imagem do passado. Foi, sim, mas visão apenas; Daquelas visões amenas Que à mente dos infelizes Descem vivas e animadas, Cheias de luz e esperança E de celestes matizes: Mas, apenas dissipadas, Fica uma leve lembrança, Não ficam outras raízes. Inda assim, embora sonho, Mas sonho doce e risonho, Desse-me Deus que fingida Tivesse aquela ventura Noite por noite, hora a hora, No que me resta de vida, Que, já livre da amargura, Alma, que em dores me chora, Chorara de agradecida!
Joaquim Maria Machado de Assis
(1863) E caiu a chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites Gênesis — c. VII, v. 12 Do sol ao raio esplêndido, Fecundo, abençoado, A terra exausta e úmida Surge, revive já; Que a morte inteira e rápida Dos filhos do pecado Pôs termo à imensa cólera Do imenso Jeová! Que mar não foi! que túmidas As águas não rolavam! Montanhas e planícies Tudo tornou-se mar; E nesta cena lúgubre Os gritos que soavam Era um clamor uníssono Que a terra ia acabar. Em vão, ó pai atônito, Ao seio o filho estreitas; Filhos, esposos, míseros, Em vão tentais fugir! Que as águas do dilúvio Crescidas e refeitas, Vão da planície aos píncaros Subir, subir, subir! Só, como a idéia única De um mundo que se acaba, Erma, boiava intrépida, A arca de Noé; Pura das velhas nódoas De tudo o que desaba, Leva no seio incólumes A virgindade e a fé. Lá vai! Que um vento alígero, Entre os contrários ventos, Ao lenho calmo e impávido Abre caminho além . . . Lá vai! Em torno angústias, Clamores, lamentos; Dentro a esperança, os cânticos, A calma, a paz e o bem. Cheio de amor, solícito, O olhar da divindade, Vela aos escapos náufragos Da imensa aluvião. Assim, por sobre o túmulo Da extinta humanidade Salva-se um berço; o vínculo Da nova creação. Íris, da paz o núncio, O núncio do concerto, Riso do Eterno em júbilo, Nuvens do céu rasgou; E a pomba, a pomba mística, Volando ao lenho aberto, Do arbusto da planície Um ramo despencou. Ao sol e às brisas tépidas Respira a terra um hausto, Viçam de novo as árvores, Brota de novo a flor; E ao som de nossos cânticos, Ao fumo do holocausto Desaparece a cólera Do rosto do Senhor.
Joaquim Maria Machado de Assis
Tu foges à cidade? Feliz amigo! Vão Contigo a liberdade, A vida e o coração. A estância que te espera É feita para o amor Do sol com a primavera, No seio de uma flor. Do paço de verdura Transpõe-me esses umbrais; Contempla a arquitetura Dos verdes palmeirais. Esquece o ardor funesto Da vida cortesã; Mais val que o teu Digesto A rosa da manhã. Rosa . . . que se enamora Do amante colibri, E desde a luz da aurora Os seios lhe abre e ri. Mas Zéfiro brejeiro Opõe ao beija-flor Embargos de terceiro Senhor e possuidor. Quer este possuí-la, Também o outro a quer. A pobre flor vacila, Não sabe a que atender. O sol, juiz tão grave Como o melhor doutor, Condena a brisa e a ave Aos ósculos da flor. Zéfiro ouve e apela. Apela o colibri. No entanto, a flor singela Com ambos folga e ri. Tal a formosa dama Entre dois fogos, quer Aproveitar a chama . . . Rosa, tu és mulher! Respira aqueles ares, Amigo. Deita ao chão Os tédios e os pesares. Revive. O coração É como o passarinho, Que deixa sem cessar A maciez do ninho Pela amplidão do ar. Pudesse eu ir contigo, Gozar contigo a luz; Sorver ao pé do amigo Vida melhor e a flux! Ir escrever nos campos, Nas folhas dos rosais, E à luz dos pirilampos, Ó Flora, os teus jornais! Da estrela que mais brilha Tirar um raio, e então Fazer a gazetilha Da imensa solidão. Vai tu, que podes. Deixa Os que não podem ir, Soltar a inútil queixa. Mudar é reflorir.
Joaquim Maria Machado de Assis
Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Fil. Elis. Quando a noturna sombra envolve a terra E à paz convida o lavrador cansado, À fresca brisa o seio delicado A branca flor do embiroçu descerra. E das límpidas lágrimas que chora A noite amiga, ela recolhe alguma; A vida bebe na ligeira bruma, Até que rompe no horizonte a aurora. Então, à luz nascente, a flor modesta, Quando tudo o que vive alma recobra, Languidamente as suas folhas dobra, E busca o sono quando tudo é festa, Suave imagem da alma que suspira E odeia a turba vã! da alma que sente Agitar-se-lhe a asa impaciente E a novos mundos transportar-se aspira! Também ela ama as horas silenciosas, E quando a vida as lutas interrompe, Ela da carne os duros elos rompe, E entrega o seio às ilusões viçosas. É tudo seu, — tempo, fortuna, espaço, E o céu azul e os seus milhões de estrelas; Abrasada de amor, palpita ao vê-las, E a todas cinge no ideial abraço. O rosto não encara indiferente, Nem a traidora mão cândida aperta; Das mentiras da vida se liberta E entra no mundo que jamais não mente. Noite, melhor que o dia, quem não te ama? Labor ingrato, agitação, fadiga, Tudo faz esquecer tua asa amiga Que a alma nos leva onde a ventura a chama. Ama-te a flor que desabrocha à hora Em que o último olhar o sol lhe estende, Vive, embala-se, orvalha-se, rescende, E as folhas cerra quando rompe a aurora.
Joaquim Maria Machado de Assis
Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo. Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme. Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois esta criatura está em toda a obra; Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as forças dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
Joaquim Maria Machado de Assis
Pensa em ti mesma, acharás Melhor poesia, Viveza, graça, alegria, Doçura e paz. Se já dei flores um dia, Quando rapaz, As que ora dou têm assaz Melancolia. Uma só das horas tuas Valem um mês Das almas já ressequidas. Os sóis e as luas Creio bem que Deus os fez Para outras vidas.
Joaquim Maria Machado de Assis
A Francisco Paz Ulysse, jeté sur les rives d'Ithaque, ne les reconnait pas et pleure sa patrie. Ainsi l'homme dans le bonheur possédé ne reconnait pas son rêve et soupire DANIEL STERN I Quando, leitora amiga, no ocidente Surge a tarde esmaiada e pensativa; E entre a verde folhagem recendente Lânguida geme viração lasciva; E já das tênues sombras do oriente Vem apontando a noite, e a casta diva Subindo lentamente pelo espaço, Do céu, da terra observa o estreito abraço; II Nessa hora de amor e de tristeza, Se acaso não amaste e acaso esperas Ver coroar-te a juvenil beleza Casto sonho das tuas primaveras; Não sentes escapar tua alma acesa Para voar às lúcidas esferas? Não sentes nessa mágoa e nesse enleio Vir morrer-te uma lágrima no seio? III Sente-lo? Então entenderás, Elvira, Que assentada à janela, erguendo o rosto, O vôo solta à alma que delira E mergulha no azul de um céu de agosto; Entenderás então por que suspira, Vítima já de um íntimo desgosto, A meiga virgem, pálida e calada, Sonhadora, ansiosa e namorada. (. ..) VI Era uma jóia a alcova em que sonhava Elvira, alma de amor. Tapete fino De apurado lavor o chão forrava. De um lado oval espelho cristalino Pendia. Ao fundo, à sombra, se ocultava Elegante, engraçado, pequenino Leito em que, repousando a face bela, De amor sonhava a pálida donzela. VII Não me censure o crítico exigente O ser pálida a moça é meu costume Obedecer à lei de toda a gente Que uma obra compõe de algum volume. Ora, no nosso caso, é lei vigente Que um descorado rosto o amor resume. Não tinha Miss Smolen outras cores; Não as possui quem sonha com amores. VIII Sobre uma mesa havia um livro aberto; Lamartine, o cantor aéreo e vago, Que enche de amor um coração deserto; Tinha-o lido; era a página do Lago. Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto, Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago; Chorava aos cantos da divina lira. .. É que o grande poeta amava Elvira! IX Elvira! o mesmo nome! A moça os lia, Com lágrimas de amor, os versos santos, Aquela eterna e lânguida harmonia Formada com suspiros e com prantos; Quando escutava a musa da elegia Cantar de Elvira os mágicos encantos, Entrava-lhe a voar a alma inquieta, E com o amor sonhava de um poeta. Imagem - 00010005 Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Pálida Elvira. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.69-71. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira). NOTA: Poema composto de 97 oitavas
Joaquim Maria Machado de Assis
DE QUANDO em quando aparece-nos o conto-do-vigário. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composição puderam receber integralmente os lucros do editor. O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo de que muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de umas varas de plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela finura do genro; mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir, ao passo que Jacó passa por um varão arguto e hábil. O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiaque, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu também, tinha notícia da rua indicada. Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado da Bahia, com vinte contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixara dezesseis, para os náufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega. Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia tão boa ocasião de ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não, nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de remuneração. – Não é preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar a êste o que traz aí consigo. – Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao maço dos vinte; ação análoga à das varas de Jacó. O fazendeiro pegou do maço todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria ficado com o dinheiro, sem curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão, e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi então que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era de uma só cor, corno as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume. A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o fazendeiro do Chiador correu logo a polícia; é o que fazem todos . .. Mas a polícia, não podendo ir à cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas hábeis em fugir, como os heróis dos melodramas, não fez mais que distribuir o segundo milheiro do conto-do-vigário, mandando a notícia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edição. Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever estudando o conto-do-vigário pelos séculos atras, as suas modificações segundo o tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. É seguramente maior o número das tragédias, tanta é a gente que se tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josué até aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanitárias, segundo telegramas de ontem, esforçam-se grandemente por sanear a cidade "empestada pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar livre". Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detestável fedor de gente morta não custa a vitória de um princípio. O conto é menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia à obra, é a feitura dela. O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, roas é conto, um conto especial, tão célebre como os outros, e mais lucrativo que nenhum. ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3. p. 650-651. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira). NOTAS: Terceira. Membros da Ordem Terceira da igreja católica. Voltaire. François-Marie Arouet (1694-1778), escritor francês que se colocou contra a intolerância. Boccaccio. Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor italiano criador da prosa literária de seu país. Andersen. Hans Christian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês que se notabilizou pelo elementos fantásticos de suas narrativas para crianças