Álvaro de Campos
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O Poeta Álvaro de...
PASSAGEM DAS HORAS [b]

PASSAGEM DAS HORAS [b]

Mil-Frases

há 1 ano
Um poema de Álvaro de Campos

Trago dentro do meu coração, Como num cofre que se não pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde, O coral das Maldivas em passagem cálida, Macau à uma hora da noite... Acordo de repente... Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-... E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade... A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol... Dar-es-Salaam (a saída é difícil)... Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar... Tempestades em torno ao Guardafui... E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada... E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo... Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei... Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me. Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas, Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, Deste desassossego no fundo de todos os cálices, Desta angústia no fundo de todos os prazeres, Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas, Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, Consanguinidade com o mistério das coisas, choque Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz. Seja o que for, era melhor não ter nascido, Porque, de tão interessante que é a todos os momentos, A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida. Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas... Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca... Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim? Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão, Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra. Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos. Oh, mágoa imensa do mundo, o que falta é agir... Tão decadente, tão decadente, tão decadente... Só estou bem quando ouço música, e nem então. Jardins do século dezoito antes de 89, Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira? Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo, A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se. Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver. Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente. Estou no caminho de todos e esbarram comigo. Minha quinta na província, Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti. Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, E fica sempre, fica sempre, fica sempre, Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito. Só humanitariamente é que se pode viver. Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos, Só assim – ai de mim! –, só assim se pode viver. Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim! Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, Mas tudo ou sobrou ou foi pouco – não sei qual – e eu sofri. Vivi todos as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. Amei e odiei como toda a gente, Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo. Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti. Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito, Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo. Mão suave e antiga das emoções sem gesto, Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo, Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos, A direcção constantemente abandonada do nosso destino, A nossa incerteza pagã sem alegria, A nossa fraqueza cristã sem fé, O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases, A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos, A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida... Não sei sentir, não sei ser humano, conviver De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair, Uma coisa vinda directamente da natureza para mim. Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila... Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz, Tu que não existes, que és só a ausência da luz, Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida, Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa, Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte... Tu, cuja vinda é tão suave que me parece um afastamento, Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja, Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho, Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva... Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente, Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens, Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem... Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquele com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor, abstracta, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também Porque ser inferior é diferente de ser superior, E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter, E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.Sim, como sou reiComo sou rei absoluto na minha simpatia,Basta que ela exista para que tenha razão de ser.Chorei, não procurei esconderTodos viram, fingiramPena de mim, não precisavaAli onde eu choreiQualquer um choravaDar a volta por cima que eu deiQuero ver quem davaUm homem de moral não fica no chãoNem quer que mulherVenha lhe dar a mãoReconhece a queda e não desanimaLevanta, sacode a poeiraE dá a volta por cima


"Passagem das Horas [b]" é um poema de Álvaro de Campos que expressa a intensidade da experiência humana e a busca constante por sensações e emoções. O eu lírico reflete sobre as diversas paisagens e lugares que já conheceu, mas sente que ainda falta algo
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