Poemas Sobre a Vida
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Ricardo Reis
A abelha que, voando, freme sobre A colorida flor, e pousa, quase Sem diferença dela À vista que não olha, Não mudou desde Cecrops. Só quem vive Uma vida com ser que se conhece Envelhece, distinto Da espécie de que vive. Ela é a mesma que outra que não ela. Só nós – ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! – Mortalmente comp'ramos Ter mais vida que a vida. 02/09/1923
Ricardo Reis
A abelha que, voando, freme sobre A colorida flor, e pousa, quase Sem diferença dela À vista que não olha, Não mudou desde Cecrops. Só quem vive Uma vida com ser que se conhece Envelhece, distinto Da espécie de que vive. Ela é a mesma que outra que não ela. Só nós – ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! – Mortalmente comp'ramos Ter mais vida que a vida. 02/09/1923
Ricardo Reis
A abelha que, voando, freme sobre A colorida flor, e pousa, quase Sem diferença dela À vista que não olha, Não mudou desde Cecrops. Só quem vive Uma vida com ser que se conhece Envelhece, distinto Da espécie de que vive. Ela é a mesma que outra que não ela. Só nós – ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! – Mortalmente comp'ramos Ter mais vida que a vida. 02/09/1923
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. Aquele agudo interno movimento Por quem os fiz pensados Passa, e eu, outro já que o factor deles, Póstumo substituo-me. Chegada a hora, eu próprio serei todo Menos que essas palavras E papel, ou papiro escrito e morto Será mais eu que eu mesmo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morre a obra a vida nossa. Durar, sentir, só os altos deuses unem. Nós não somos inteiros. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado rege que assim rejam. Mas se assim é, é assim.
Álvaro de Campos
Ah, de que serve A arte que quer ser vida, sem a vida que quer ser? De que serve a arte se não é a arte que queremos? De que nos serve a vida se a queremos e não a buscamos, Se nunca é para nós a vida? Ah, p'ra saudar-te Era preciso o coração Da terra toda... O corpo-espírito das coisas,
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. O criador interno movimento Por quem fui autor deles Passa, e eu sobrevivo, já não quem Escreveu o que fez. Chegada a hora, passarei também E os versos, que não sentem Serão a única restança posta Nos capitéis do tempo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morremos a obra viva. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado faz que eles a rejam. Mas se assim é, é assim. Aquele agudo interno movimento, Por quem fui autor deles Primeiro passa, e eu, outro já do que era, <b><i> </i></b>Póstumo substituo-me. Chegada a hora, também serei menos Que os versos permanentes. E papel, ou papiro escrito e morto Tem mais vida que a mente. Na noite a sombra é mais igual à noite Que o corpo que alumia.
Ricardo Reis
Ad juvenem rosam offerentem A flor que és, não a que dás, eu quero. Porque me negas o que te não peço? Tão curto tempo é a mais longa vida, E a juventude nela! Flor vives, vã; porque te flor não cumpres? Se te sorver esquivo o infausto abismo, Perene velarás, absurda sombra, O que não dou buscando. Na oculta margem onde os lírios frios Da infera leiva crescem, e a corrente Monótona, não sabe onde é o dia, Sussurro gemebundo.
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. O criador interno movimento Por quem fui autor deles Passa, e eu sobrevivo, já não quem Escreveu o que fez. Chegada a hora, passarei também E os versos, que não sentem Serão a única restança posta Nos capitéis do tempo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morremos a obra viva. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado faz que eles a rejam. Mas se assim é, é assim. Aquele agudo interno movimento, Por quem fui autor deles Primeiro passa, e eu, outro já do que era, <b><i> </i></b>Póstumo substituo-me. Chegada a hora, também serei menos Que os versos permanentes. E papel, ou papiro escrito e morto Tem mais vida que a mente. Na noite a sombra é mais igual à noite Que o corpo que alumia.
Ricardo Reis
Sob estas árvores ou aquelas árvores Conduzi a dança, Conduzi a dança, ninfas singelas Até ao amplo gozo Que tomais da vida. Conduzi a dança E sê quase humanas Com o vosso gozo derramado em ritmos Em ritmos solenes Que a nossa alegria torna maliciosos Para nossa triste Vida que não sabe sob as mesmas árvores Conduzir a dança...
Ricardo Reis
Ad juvenem rosam offerentem A flor que és, não a que dás, eu quero. Porque me negas o que te não peço? Tão curto tempo é a mais longa vida, E a juventude nela! Flor vives, vã; porque te flor não cumpres? Se te sorver esquivo o infausto abismo, Perene velarás, absurda sombra, O que não dou buscando. Na oculta margem onde os lírios frios Da infera leiva crescem, e a corrente Monótona, não sabe onde é o dia, Sussurro gemebundo.
Ricardo Reis
Quero, da vida, só não conhecê-la. Bastam, a quem o Fado pôs na vida, As formas sucessórias Da vida insubsistente. Pouco serve pensar que são eternos Os nossos nadas com que na alma amamos Os outros pobres nadas Que (...) Gratos aos deuses, menos pela incerta Posse do sonhado certo, recolhamos A mercê passageira De instantes que não duram.
Ricardo Reis
Quero, da vida, só não conhecê-la. Bastam, a quem o Fado pôs na vida, As formas sucessórias Da vida insubsistente. Pouco serve pensar que são eternos Os nossos nadas com que na alma amamos Os outros pobres nadas Que (...) Gratos aos deuses, menos pela incerta Posse do sonhado certo, recolhamos A mercê passageira De instantes que não duram.
Ricardo Reis
Se em verdade não sabes (nem sustentas Que sabes) que há na vida mais que a vida, Porque com tanto esforço e cura tanta, Operoso a não vives? Porque, sem paraíso que apeteças, Amontoas riquezas, nem as gastas, É para teu cadáver que amontoas? Gozas menos que ganhas. Ah, se não tens que esperes, salvo a morte, Não cures mais que do preciso esforço Para passar incólume na vida De (...) Sim, gozas. Mas mais rico és que ditoso Se só para o que perdes gozas, Menos te o esforço oneraria, Sem ele. (...) Ah servidão irreprimível, nada Da vida breve subsiste, que sabes Que morre toda, e gasta-se nas obras Egoísta de um futuro que não é seu. Mas respondes-me: E os poemas que escreves A quem os dás futuro? A obra obrigas E o homem só por semear semeia O que o Destino manda.
Ricardo Reis
Com que vida encherei os poucos breves Dias que me são dados? Será minha A minha vida ou dada A outros ou a sombras? À sombra de nós mesmos quantos homens Inconscientes nos sacrificamos, E um destino cumprimos Nem nosso nem alheio! Ó deuses imortais, saiba eu ao menos Aceitar sem querê-lo, sorridente, O curso áspero e duro Da estrada permitida. Porém nosso destino é o que for nosso, Que nos deu a sorte, ou, alheio fado, Anónimo a um anónimo, Nos arrasta a corrente.
Ricardo Reis
Pese a sentença igual da ignota morte Em cada breve corpo, é entrudo e riem, Felizes, porque em eles pensa e sente A vida, que não eles. De rosas, inda que de falsas, teçam Capelas veras. Escasso, curto é o espaço Que lhes é dado, e por bom caso em todos Breve nem vão sentido. Se a ciência é vida, sábio é só o néscio. Quão pouco diferença a mente interna Do homem da dos brutos! Sós! Leixai Viver os moribundos!
Ricardo Reis
A folha insciente, antes que a própria morra Para nós morre, Cloé, Para nós, que sabemos que ela morre Assim, Cloé, assim Antes que os próprios corpos, que empregamos No amor, ela envelhece. Assim, diversos, somos, inda jovens, Só a mútua lembrança. Ah, se o que somos é sempre isto, e apenas Uma hora é o que somos, Com tal fúria nessa hora nos usemos Que arda sua lembrança Como vida, e nos beijemos, Cloé, Como se, findo o beijo Único, houvesse de ruir a súbita Mole do morto mundo.
Ricardo Reis
A folha insciente, antes que a própria morra Para nós morre, Cloé, Para nós, que sabemos que ela morre Assim, Cloé, assim Antes que os próprios corpos, que empregamos No amor, ela envelhece. Assim, diversos, somos, inda jovens, Só a mútua lembrança. Ah, se o que somos é sempre isto, e apenas Uma hora é o que somos, Com tal fúria nessa hora nos usemos Que arda sua lembrança Como vida, e nos beijemos, Cloé, Como se, findo o beijo Único, houvesse de ruir a súbita Mole do morto mundo.
Álvaro de Campos
Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração! Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida? Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada. Alma abstracta e visual até aos ossos, Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, Refúgio das saudades de todos os deuses antigos, Espírito humano da terra materna, Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva... Mestre, meu mestre! Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim! Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido. Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu. Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila. Depois, tenho sido como as ervas arrancadas, Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça, E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista, Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Porque é que me chamaste para o alto dos montes Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto, Ou canta com voz divina entre ruínas? Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma, Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha? Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! Feliz o homem marçano, Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, Que tem a sua vida usual, Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio. Que dorme sono, Que come comida, Que bebe bebida, e por isso tem alegria. A calma que tinhas, deste-ma, e foi inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir. 15/04/1928
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração! Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida? Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada. Alma abstracta e visual até aos ossos, Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, Refúgio das saudades de todos os deuses antigos, Espírito humano da terra materna, Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva... Mestre, meu mestre! Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim! Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido. Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu. Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila. Depois, tenho sido como as ervas arrancadas, Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça, E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista, Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Porque é que me chamaste para o alto dos montes Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto, Ou canta com voz divina entre ruínas? Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma, Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha? Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! Feliz o homem marçano, Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, Que tem a sua vida usual, Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio. Que dorme sono, Que come comida, Que bebe bebida, e por isso tem alegria. A calma que tinhas, deste-ma, e foi inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir. 15/04/1928
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração! Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida? Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada. Alma abstracta e visual até aos ossos, Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, Refúgio das saudades de todos os deuses antigos, Espírito humano da terra materna, Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva... Mestre, meu mestre! Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim! Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido. Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu. Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila. Depois, tenho sido como as ervas arrancadas, Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça, E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista, Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Porque é que me chamaste para o alto dos montes Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto, Ou canta com voz divina entre ruínas? Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma, Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha? Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! Feliz o homem marçano, Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, Que tem a sua vida usual, Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio. Que dorme sono, Que come comida, Que bebe bebida, e por isso tem alegria. A calma que tinhas, deste-ma, e foi inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir. 15/04/1928