Poemas sobre Liberdade
Versos que exploram o valor da liberdade, seja ela individual, cultural ou social.
Ricardo Reis
Maior é quem a passo e passo avança Na sua consciência do Universo E palmo a palmo ganha O domínio dos deuses. Porque quanto mais certas vê as cousas Mais por seu par os deuses o consentem Até sentir seu corpo Roçar corpos eternos. Deixa, (...) meu, a ambição tua De entre os homens por duque seres tido: Deixa luzir p'ra outros <b><i> </i></b>As lanças e as espadas De pelo gládio à glória e à (...) vires . E a confiança em (...) A glória onde te leva <b><i> </i></b>Mais que a onde não há glória?
Olavo Bilac
NÃO ME FALTARIAM ASSUNTOS com que atulhar o bojo de uma larga crônica, bem nutrida e bem variada, neste sábado em que escrevo — um sábado alegre e quente, um sol que cobre de tons de ouro e topázio os nossos feios telhados do século atrasado. Mas não quero outro assunto senão este: o bond, — o bond amável e modesto, veículo da democracia, igualador de castas, nivelador de fortunas, — o bond despretensioso, de que, anteontem, festejamos o 35° aniversário natalício. Natalício sim, — porque, para o Rio de janeiro, o bond nasceu há trinta e cinco anos, somente. E a cidade ainda está cheia de gente que se lembra das gôndolas pesadas e oscilantes, que se arrastavam aos trancos, morosas e feias como grandes hipopótamos. O bond, assim que nasceu, matou a "gôndola", e a "diligência", limitou despoticamente a esfera da ação das caleças e dos coupés, tomou conta de toda da cidade, — e só por generosidade ainda admite a concorrência, aliás bem pouco forte, do tilbury. Em trinta e cinco anos, esse operário da democracia estendeu por todas as zonas da urbs o aranhol dos seus trilhos metálicos, e senhoreou-se de todas as ruas urbanas e suburbanas, povoando bairros afastados, criando bairros novos, alargando de dia em dia o âmbito da capital, estabelecendo comunicações entre todos os alvéolos da nossa imensa colméia. São dele as ruas, são dele as praças, tudo é dele, atualmente. De dia e de noite, indo e vindo, ao ronrom da corrente elétrica, ou ao rumoroso patear dos muares sobre as pedras, aí passa ele, o triunfador, — o servidor dos ricos, a providência dos pobres, a vida e a animação da cidade. Haja sol ou chova, labute ou durma a cidade, o trabalho metódico do bond não cessa: e alta noite, ou alta madrugada, quando já os mais terríveis notívagos se meteram no vale dos lençóis, ainda ele está cumprindo o seu fadário, deslizando sobre os trilhos, abrindo clareiras na treva com as suas lanternas vermelhas ou azuis, acordando os ecos das ruas desertas, velando incansável pela comodidade, pelo conforto, pelo serviço da população. Cheio ou vazio, com passageiros suspensos em pencas das balaustradas ou abrigando apenas dois ou três viajantes sonolentos, — a sua marcha é a mesma, certa e pausada, num ritmo regular que é a expressão perfeita de regularidade da sua missão na terra... Trinta e cinco anos... Para celebrar esse aniversário, a Jardim Botânico, que se orgulha da sua decania, da sua dignidade de primaz das companhias de bonds, organizou festas alegres, com muita música e muita luz, — e com muita satisfação dos empregados, que tiveram lunch, relevações de penas, pequenos favores amáveis, e até uma proclamação do gerente, falando em "vestais", em "fogo sagrado", e em outras cousas igualmente lindas e retóricas. No largo do Machado, vi ontem um bond, encostado ao jardim, fulgurante e garrido, emergindo de entre tufos de folhagens, constelado de lâmpadas elétricas, apendoado de flâmulas, e ressoante de músicas festivas. Confesso que gostei imensamente dessa apoteose do Bond. Era bem justo que o glorificassem, — a esse belo companheiro e servidor da nossa atividade. Naquela apoteose, vibrava a alma agradecida de toda a população. Por mim, não me lembro das "gôndolas", nem do dia em que os primeiros bonds partiram da rua do Ouvidor. Nesse tempo, eu ainda era um pirralho de dois anos e tanto, mais ocupado em ensaiar a língua tatibitate do que em tomar conhecimento de progressos. Mas o Jornal do Commercio, esse venerando ancestral (que, se me não engano, em fins de abril de 1500, já dava minuciosa notícia da ancoragem da esquadra de Cabral em Porto Seguro), contou em 10 de outubro de 1868 o que foi a festa da inauguração. O trajeto (disse o velho Jornal) fez-se entre alas de povo, achando-se também as janelas guarnecidas de espectadores; os carros são cômodos e largos, sem por isso ocuparem mais espaço da rua do que as gôndolas, porque as rodas giram debaixo da caixa, e uma só parelha de bestas puxa aquela pesada máquina suavemente sobre os trilhos, sem abalo para o passageiro, que quase não sente o movimento. Essas palavras podem parecer hoje frias e secas: mas, naquele tempo, e Gritas pela gente do Jornal, deviam ser o cúmulo do entusiasmo... Daquele reduto da Circunspecção, daquele templo da Prudência, só podia sair louvores bem calculados e medidos. Tanto assim que o final da notícia revelava uma reserva cautelosa: Cumpre deixar que a experiência fale por si, mas, tanto quanto desde já pode conjecturar-se, o que devemos desejar é que a mesma facilidade da locomoção se estenda a outros arrabaldes da cidade. Vejam só o que é o hábito! Naqueles primeiros dias da existência dos bonds tudo parecia bem: era um espanto ver que as rodas giravam debaixo das caixas, e que os carros não ocupavam mais espaço do que as gôndolas, e que uma só parelha de bestas bastava para puxar a pesada máquina, e que o passageiro quase não sentia o movimento! Cotejem-se esses elogios com as queixas de hoje, — e ter-se-á, mas uma vez, a confirmação desta grande lei, que é tão verdadeira para as cousas do espírito como para as cousas do corpo: "as exigências aumentam na razão direta das concessões." Se naquele tempo tudo parecia bom, hoje tudo parece mau: o movimento é moroso, os solavancos são terríveis, luz é escassa, os condutores só merecem censura, os horários nunca são cumpridos, e tudo anda à matroca... Tudo isso é natural: depois da luz do azeite, já a luz do querosene não nos satisfez, como depois da luz do querosene não nos satisfez a luz do gás, e a mesma luz da eletricidade já nos está parecendo insuficiente... Mas que te importa que digamos mal de ti, condescendente e impassível bond? Tu não dás ouvidos às nossas recriminações, e vais alargando o teu domínio, dilatando o teu aranhol, suprimindo as distâncias, confraternizando pela aproximação o saco do Alferes e Botafogo, a Vila Guarani e o Cosme Velho, e reinando como senhor absoluto e indispensável sobre a nossa vida. E deixa-me dizer-te aqui, nesta coluna repousada, que não te amo apenas pelos serviços materiais que nos prestas, senão também pelos teus grandes serviços morais. Tu és o Karl Marx dos veículos, o Benoit Malon dos transportes. Sem dar mostras do que fazes, tu vais passando a rasoura nos preconceitos, e pondo todas as classes no mesmo nível. Tu és um grande Socialista, ó bond amável! Os ricos, atendendo à tua comodidade e apreciando a tua barateza, abandonam por ti as carruagens de luxo, e preferem ao trote dos cavalos de raça o trote das tuas bestas ou a suave carreira da tua corrente elétrica. Assim, nos teus bancos, acotovelam-se as classes, ombreiam as castas, flanqueiam-se a opulência e a penúria; sobre os teus assentos esfregam-se igualmente os impecáveis fundilhos das calças dos janotas e os fundilhos remendados das calças dos operários; e, nessa vizinhança igualadora, roçam-se as sedas das grandes damas nas chitas desbotadas, das criadas de servir. Aí, ao lado do capitalista gotoso, senta-se o trabalhador esfomeado; a costureirinha humilde, que nem sempre janta, acha lugar ao lado da matrona opulenta, carregada de banhas e de apólices; o estudante brejeiro encosta-se ao estadista grave; o poeta, que tem a alma cheia de rimas, toca com o joelho o joelho do banqueiro, que tem a carteira cheia de notas de quinhentos mil-réis; aí a miséria respira com a riqueza, e ambas se expõem aos mesmos solavancos, e arreliam-se com as mesmas demoras, e sufocam-se com a mesma poeira... Tu és um grande apóstolo do Socialismo, ó bond modesto! tu destruíste os preconceitos de raça e de cor, tu baralhaste na mesma expansão de vida o orgulho dos fortes e a humildade dos fracos, as ambições e os desinteresses, a beleza e a fealdade, a saúde e a invalidez... E, além disso, amo-te porque és, juntam
Ricardo Reis
Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas. Pouco pode o homem contra a externa vida. Deixa haver a injustiça. Nada muda, que mudes. Não tens mais reino que a doada mente. Essa, em que és servo, grato o Fado e os Deuses, Governa, até à fronteira, Onde a vontade finge. Aí vencido, tu por vencedores Os grandes deuses e o Destino ostentas. Não há a dupla derrota De derrota e vileza. Assim penso, e esta súbita justiça Com que queremos moderar as cousas, Expilo, como a um servo Intromissor da mente. Se nem de mim posso ser dono, como Quero ser dono ou lei do que acontece Onde me a mente e corpo <b><i> </i></b>Não são mais do que parte? Basta-me que me baste, e o resto gire Na órbita prevista, em que até os deuses Giram, sois centros servos De um movimento externo.
Álvaro de Campos
Com teu gesto pintado e exagerado E o teu prolixo modo de sorrir E o teu olhar, sob o torpor copado Da expressão, veludineo em dirigir Tu nada sabes do essencial pecado E uma inocência (...) vem luzir Como uma luz de azeite em descampado No teu gesto ensinado a conseguir. Porque a análise é a vera perversão... O único vício é rebuscar a alma, Dor a dor, sensação a sensação... Tu, a exterior, que mal tens na alma oca? Nada... Ai de nós de quem a vida é calma. E quem é que fica dentro ... (Abre a tua boca!)
Álvaro de Campos
Com teu gesto pintado e exagerado E o teu prolixo modo de sorrir E o teu olhar, sob o torpor copado Da expressão, veludineo em dirigir Tu nada sabes do essencial pecado E uma inocência (...) vem luzir Como uma luz de azeite em descampado No teu gesto ensinado a conseguir. Porque a análise é a vera perversão... O único vício é rebuscar a alma, Dor a dor, sensação a sensação... Tu, a exterior, que mal tens na alma oca? Nada... Ai de nós de quem a vida é calma. E quem é que fica dentro ... (Abre a tua boca!)
Álvaro de Campos
Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões. Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles? Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo. Quero respirar o ar sozinho, Não tenho pulsações em conjunto, Não sinto em sociedade por quotas, Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim. Onde quero dormir? No quintal... Nada de paredes — ser o grande entendimento — Eu e o universo, E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos, O grande abismo infinito para cima A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara, Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo. Não quero! Dêem-me a liberdade! Quero ser igual a mim mesmo. Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras! Não me façam elogiável ou inteligível! Não me matem em vida! Quero saber atirar com essa bola alta à lua E ouvi-la cair no quintal do lado! Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... " Amanhã vou buscá-la ao quintal" Buscá-la ao quintal Ao quintal ao lado...
Álvaro de Campos
Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões. Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles? Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo. Quero respirar o ar sozinho, Não tenho pulsações em conjunto, Não sinto em sociedade por quotas, Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim. Onde quero dormir? No quintal... Nada de paredes — ser o grande entendimento — Eu e o universo, E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos, O grande abismo infinito para cima A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara, Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo. Não quero! Dêem-me a liberdade! Quero ser igual a mim mesmo. Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras! Não me façam elogiável ou inteligível! Não me matem em vida! Quero saber atirar com essa bola alta à lua E ouvi-la cair no quintal do lado! Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... " Amanhã vou buscá-la ao quintal" Buscá-la ao quintal Ao quintal ao lado...
Ricardo Reis
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre. Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.
Ricardo Reis
Aqui, Neera, longe De homens e de cidades, Por ninguém nos tolher O passo, nem vedarem A nossa vista as casas, Podemos crer-nos livres. Bem sei, ó flava, que inda Nos tolhe a vida o corpo, E não temos a mão Onde temos a alma; Bem sei que mesmo aqui Se nos gasta esta carne Que os deuses concederam Ao estado antes de Averno. Mas aqui não nos prendem Mais coisas do que a vida, Mãos alheias não tomam Do nosso braço, ou passos Humanos se atravessam Pelo nosso caminho. Não nos sentimos presos Senão com pensarmos nisso, Por isso não pensemos E deixemo-nos crer Na inteira liberdade Que é a ilusão que agora Nos torna iguais dos deuses. 02/08/1914
Ricardo Reis
Não sem lei, mas segundo leis diversas Entre os homens reparte o fado e os deuses Sem justiça ou injustiça Prazeres, dores, gozos e perigos. Bem ou mal, não terás o que mereces. Querem os deuses a isto obrigar Porque o Fado não tem Leis nossas com que reja a sua lei. Quem é rei hoje, amanhã escravo cruza Com o escravo de ontem que é depois rei. Sem razão um caiu, Sem causa nele o outro ascenderá. Não em nós, mas dos deuses no capricho E nas sombras p'ra além do seu domínio Está o que somos, e temos, A vida e a morte do que somos nós. Se te apraz mereceres, que te apraza Por mereceres, não porque te o Fado Dê o prémio ou a paga De com constância haveres merecido. Dúbia é a vida, inconstante o que a governa. O que esperamos nem sempre acontece Nem nos falece sempre, Nem há com que a alma uma ou outra cousa espere. Torna teu coração digno dos deuses E deixa a vida incerta ser quem seja. O que te acontecer Aceita. Os deuses nunca se rebelam. Nas mãos inevitáveis do destino A roda rápida soterra hoje Quem ontem viu o céu Do transitório auge do seu giro.
Ricardo Reis
Não tenhas nada nas mãos Salvo uma memória na alma Que quando te puserem Nas mãos o óbolo último Nada terás deixado. Tu serás só tu próprio Não poderão roubar-te O que nunca tiveste. Que trono te querem dar Que Atropos to não tire?... Que Coroa que não fane No arbítrio de Minos? Que horas que não te tornem Da estatura da sombra Que serás quando fores O fim da tua estrada? Colhe as flores. Abdica E sê Rei de ti próprio.
Ricardo Reis
Enquanto ao longe os bardos perturbarem Com a dos seus combates longa lista A parca e humilde chama De cada flébil vida, E nem um palmo mais sequer conquistam De riqueza ou de calma em suas almas, Nem são mais do que jogo Da ira (...) dos deuses, Quero, livre de humanas (...) De concordância com o sentir de outros Mais firmemente minha Possuir minha vida.
Ricardo Reis
Maior é quem a passo e passo avança Na sua consciência do Universo E palmo a palmo ganha O domínio dos deuses. Porque quanto mais certas vê as cousas Mais por seu par os deuses o consentem Até sentir seu corpo Roçar corpos eternos. Deixa, (...) meu, a ambição tua De entre os homens por duque seres tido: Deixa luzir p'ra outros <b><i> </i></b>As lanças e as espadas De pelo gládio à glória e à (...) vires . E a confiança em (...) A glória onde te leva <b><i> </i></b>Mais que a onde não há glória?
Ricardo Reis
Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas. Pouco pode o homem contra a externa vida. Deixa haver a injustiça. Nada muda, que mudes. Não tens mais reino que a doada mente. Essa, em que és servo, grato o Fado e os Deuses, Governa, até à fronteira, Onde a vontade finge. Aí vencido, tu por vencedores Os grandes deuses e o Destino ostentas. Não há a dupla derrota De derrota e vileza. Assim penso, e esta súbita justiça Com que queremos moderar as cousas, Expilo, como a um servo Intromissor da mente. Se nem de mim posso ser dono, como Quero ser dono ou lei do que acontece Onde me a mente e corpo <b><i> </i></b>Não são mais do que parte? Basta-me que me baste, e o resto gire Na órbita prevista, em que até os deuses Giram, sois centros servos De um movimento externo.
Ricardo Reis
Maior é quem a passo e passo avança Na sua consciência do Universo E palmo a palmo ganha O domínio dos deuses. Porque quanto mais certas vê as cousas Mais por seu par os deuses o consentem Até sentir seu corpo Roçar corpos eternos. Deixa, (...) meu, a ambição tua De entre os homens por duque seres tido: Deixa luzir p'ra outros <b><i> </i></b>As lanças e as espadas De pelo gládio à glória e à (...) vires . E a confiança em (...) A glória onde te leva <b><i> </i></b>Mais que a onde não há glória?