Poemas sobre Liberdade
Versos que exploram o valor da liberdade, seja ela individual, cultural ou social.
Luís Vaz de Camões
Quem pode livre ser, gentil Senhora, Vendo-vos com juízo sossegado, Se o Menino que de olhos é privado Nas meninas de vossos olhos mora? Ali manda, ali reina, ali namora, Ali vive das gentes venerado; Que o vivo lume e o rosto delicado Imagens são nas quais o Amor se adora. Quem vê que em branca neve nascem rosas Que fios crespos de ouro vão cercando, Se por entre esta luz a vista passa, Raios de ouro verá, que as duvidosas Almas estão no peito trespassando Assim como um cristal o Sol trespassa.
Luís Vaz de Camões
Nunca em amor danou o atrevimento; Favorece a Fortuna a ousadia; Porque sempre a encolhida cobardia De pedra serve ao livre pensamento. Quem se eleva ao sublime Firmamento, A Estrela nele encontra que lhe é guia; Que o bem que encerra em si a fantasia, São u~as ilusões que leva o vento. Abrir-se devem passos à ventura; Sem si próprio ninguém será ditoso; Os princípios somente a Sorte os move. Atrever-se é valor e não loucura; Perderá por cobarde o venturoso Que vos vê, se os temores não remove.
Luís Vaz de Camões
De quantas graças tinha, a Natureza Fez um belo e riquíssimo tesouro, E com rubis e rosas, neve e ouro, Formou sublime e angélica beleza. Pôs na boca os rubis, e na pureza Do belo rosto as rosas, por quem mouro; No cabelo o valor do metal louro; No peito a neve em que a alma tenho acesa. Mas nos olhos mostrou quanto podia, E fez deles um sol, onde se apura A luz mais clara que a do claro dia. Enfim, Senhora, em vossa compostura Ela a apurar chegou quanto sabia De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.
Fernando Pessoa
Deixo ao cego e ao surdo A alma com fronteiras, Que eu quero sentir tudo De todas as maneiras. Do alto de ter consciência Contemplo a terra e o céu Olho-os com inocência... Nada que vejo é meu. Mas vejo tão atento Tão neles me disperso Que cada pensamento Me torna já diverso. E como são estilhaços Do ser, as coisas dispersas Quebro a alma em pedaços E em pessoas diversas. E se a própria alma vejo Com outro olhar, Pergunto se há ensejo De por isto a julgar. Ah, tanto como a terra E o mar e o vasto céu. Quem se crê próprio erra, Sou vário e não sou meu. Se as coisas são estilhaços Do saber do universo, Seja eu os meus pedaços, Impreciso e diverso. Se quanto sinto é alheio E de mim se sente, Como é que a alma veio A acabar-se em ente? Assim eu me acomodo Com o que Deus criou, Deixo teu diverso modo Diversos modos sou. Assim a Deus imito, Que quando fez o que é Tirou-lhe o infinito E a unidade até. 24/08/1930
Fernando Pessoa
Quero ser livre insincero Sem crença, dever ou posto. Prisões, nem de amor as quero. Não me amem, porque não gosto. Quando canto o que não minto E choro o que sucedeu, É que esqueci o que sinto E julgo que não sou eu. De mim mesmo viandante Olho as músicas na aragem, E a minha mesma alma errante É uma canção de viagem. 26/08/1930
Ricardo Reis
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre. Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.
Ricardo Reis
Aqui, Neera, longe De homens e de cidades, Por ninguém nos tolher O passo, nem vedarem A nossa vista as casas, Podemos crer-nos livres. Bem sei, ó flava, que inda Nos tolhe a vida o corpo, E não temos a mão Onde temos a alma; Bem sei que mesmo aqui Se nos gasta esta carne Que os deuses concederam Ao estado antes de Averno. Mas aqui não nos prendem Mais coisas do que a vida, Mãos alheias não tomam Do nosso braço, ou passos Humanos se atravessam Pelo nosso caminho. Não nos sentimos presos Senão com pensarmos nisso, Por isso não pensemos E deixemo-nos crer Na inteira liberdade Que é a ilusão que agora Nos torna iguais dos deuses. 02/08/1914
Ricardo Reis
Não sem lei, mas segundo leis diversas Entre os homens reparte o fado e os deuses Sem justiça ou injustiça Prazeres, dores, gozos e perigos. Bem ou mal, não terás o que mereces. Querem os deuses a isto obrigar Porque o Fado não tem Leis nossas com que reja a sua lei. Quem é rei hoje, amanhã escravo cruza Com o escravo de ontem que é depois rei. Sem razão um caiu, Sem causa nele o outro ascenderá. Não em nós, mas dos deuses no capricho E nas sombras p'ra além do seu domínio Está o que somos, e temos, A vida e a morte do que somos nós. Se te apraz mereceres, que te apraza Por mereceres, não porque te o Fado Dê o prémio ou a paga De com constância haveres merecido. Dúbia é a vida, inconstante o que a governa. O que esperamos nem sempre acontece Nem nos falece sempre, Nem há com que a alma uma ou outra cousa espere. Torna teu coração digno dos deuses E deixa a vida incerta ser quem seja. O que te acontecer Aceita. Os deuses nunca se rebelam. Nas mãos inevitáveis do destino A roda rápida soterra hoje Quem ontem viu o céu Do transitório auge do seu giro.
Ricardo Reis
Não tenhas nada nas mãos Salvo uma memória na alma Que quando te puserem Nas mãos o óbolo último Nada terás deixado. Tu serás só tu próprio Não poderão roubar-te O que nunca tiveste. Que trono te querem dar Que Atropos to não tire?... Que Coroa que não fane No arbítrio de Minos? Que horas que não te tornem Da estatura da sombra Que serás quando fores O fim da tua estrada? Colhe as flores. Abdica E sê Rei de ti próprio.
Ricardo Reis
Enquanto ao longe os bardos perturbarem Com a dos seus combates longa lista A parca e humilde chama De cada flébil vida, E nem um palmo mais sequer conquistam De riqueza ou de calma em suas almas, Nem são mais do que jogo Da ira (...) dos deuses, Quero, livre de humanas (...) De concordância com o sentir de outros Mais firmemente minha Possuir minha vida.
Ricardo Reis
Maior é quem a passo e passo avança Na sua consciência do Universo E palmo a palmo ganha O domínio dos deuses. Porque quanto mais certas vê as cousas Mais por seu par os deuses o consentem Até sentir seu corpo Roçar corpos eternos. Deixa, (...) meu, a ambição tua De entre os homens por duque seres tido: Deixa luzir p'ra outros <b><i> </i></b>As lanças e as espadas De pelo gládio à glória e à (...) vires . E a confiança em (...) A glória onde te leva <b><i> </i></b>Mais que a onde não há glória?
Ricardo Reis
Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas. Pouco pode o homem contra a externa vida. Deixa haver a injustiça. Nada muda, que mudes. Não tens mais reino que a doada mente. Essa, em que és servo, grato o Fado e os Deuses, Governa, até à fronteira, Onde a vontade finge. Aí vencido, tu por vencedores Os grandes deuses e o Destino ostentas. Não há a dupla derrota De derrota e vileza. Assim penso, e esta súbita justiça Com que queremos moderar as cousas, Expilo, como a um servo Intromissor da mente. Se nem de mim posso ser dono, como Quero ser dono ou lei do que acontece Onde me a mente e corpo <b><i> </i></b>Não são mais do que parte? Basta-me que me baste, e o resto gire Na órbita prevista, em que até os deuses Giram, sois centros servos De um movimento externo.