Poemas sobre Mudança
Versos que abordam a natureza inevitável da mudança, seus desafios e oportunidades.
Ricardo Reis
Não queiras, Lídia, edificar no espaço Que figuras futuro, ou prometer-te Amanhã. Cumpre-te hoje, não esperando. Tu mesma és tua vida. Não te destines, que não és futura. Quem sabe se, entre a taça que esvazias, E ela de novo enchida, não te a sorte Interpõe o abismo? (Athena, nº 1, Outubro de 1924)
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. Aquele agudo interno movimento Por quem os fiz pensados Passa, e eu, outro já que o factor deles, Póstumo substituo-me. Chegada a hora, eu próprio serei todo Menos que essas palavras E papel, ou papiro escrito e morto Será mais eu que eu mesmo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morre a obra a vida nossa. Durar, sentir, só os altos deuses unem. Nós não somos inteiros. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado rege que assim rejam. Mas se assim é, é assim.
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. O criador interno movimento Por quem fui autor deles Passa, e eu sobrevivo, já não quem Escreveu o que fez. Chegada a hora, passarei também E os versos, que não sentem Serão a única restança posta Nos capitéis do tempo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morremos a obra viva. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado faz que eles a rejam. Mas se assim é, é assim. Aquele agudo interno movimento, Por quem fui autor deles Primeiro passa, e eu, outro já do que era, <b><i> </i></b>Póstumo substituo-me. Chegada a hora, também serei menos Que os versos permanentes. E papel, ou papiro escrito e morto Tem mais vida que a mente. Na noite a sombra é mais igual à noite Que o corpo que alumia.
Ricardo Reis
Seguro assento na coluna firme Dos versos em que fico. O criador interno movimento Por quem fui autor deles Passa, e eu sobrevivo, já não quem Escreveu o que fez. Chegada a hora, passarei também E os versos, que não sentem Serão a única restança posta Nos capitéis do tempo. A obra imortal excede o autor da obra; E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura. Morremos a obra viva. Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida; Assim o Fado faz que eles a rejam. Mas se assim é, é assim. Aquele agudo interno movimento, Por quem fui autor deles Primeiro passa, e eu, outro já do que era, <b><i> </i></b>Póstumo substituo-me. Chegada a hora, também serei menos Que os versos permanentes. E papel, ou papiro escrito e morto Tem mais vida que a mente. Na noite a sombra é mais igual à noite Que o corpo que alumia.
Ricardo Reis
Este, seu escasso campo ora lavrando, Ora, solene, olhando-o com a vista De quem a um filho olha, goza incerto A não-pensada vida. Das fingidas fronteiras a mudança O arado lhe não tolhe, nem o empece Per que concílios se o destino rege Dos povos pacientes. Pouco mais no presente do futuro Que as ervas que arrancou, seguro vive A antiga vida que não torna, e fica, Filhos, diversa e sua.
Ricardo Reis
Não queiras, Lídia, edificar no espaço Que figuras futuro, ou prometer-te Esta ou aquela vida. Tu própria és tua vida. Não te destines. Tu não és futura. Cumpre hoje, e a gestal taça gosta A que prevês seguinte Não gozes na que gozas. Quem sabe se entre a taça que tu bebes E a que queres que siga a muda Sorte Não interpõe, saindo, Toda (...)
Ricardo Reis
Cedo de mais vem sempre, Cloé, o inverno. É sempre prematuro, inda que o espere Nosso hábito, o esfriar Do desejo que houve. Não entardece que não morra o dia. Não nasce amor ou fé em nós que não Morra com isso ao menos O não amar ou crer. Todo o gesto que o nosso corpo faz Com o repouso anterior contrasta. Nesta má circunstância Do tempo eternos somos. Só sabe da arte com que viva a vida Aquele que, de tão contínua usá-la, Furte ao tempo a vitória Das mudanças depressa, E entardecendo como um dia trópico, Até ao fim inevitável guie Uma igual vida, súbito Precipite no abismo.
Ricardo Reis
Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas. Pouco pode o homem contra a externa vida. Deixa haver a injustiça. Nada muda, que mudes. Não tens mais reino que a doada mente. Essa, em que és servo, grato o Fado e os Deuses, Governa, até à fronteira, Onde a vontade finge. Aí vencido, tu por vencedores Os grandes deuses e o Destino ostentas. Não há a dupla derrota De derrota e vileza. Assim penso, e esta súbita justiça Com que queremos moderar as cousas, Expilo, como a um servo Intromissor da mente. Se nem de mim posso ser dono, como Quero ser dono ou lei do que acontece Onde me a mente e corpo <b><i> </i></b>Não são mais do que parte? Basta-me que me baste, e o resto gire Na órbita prevista, em que até os deuses Giram, sois centros servos De um movimento externo.
Ricardo Reis
Cedo de mais vem sempre, Cloé, o inverno. É sempre prematuro, inda que o espere Nosso hábito, o esfriar Do desejo que houve. Não entardece que não morra o dia. Não nasce amor ou fé em nós que não Morra com isso ao menos O não amar ou crer. Todo o gesto que o nosso corpo faz Com o repouso anterior contrasta. Nesta má circunstância Do tempo eternos somos. Só sabe da arte com que viva a vida Aquele que, de tão contínua usá-la, Furte ao tempo a vitória Das mudanças depressa, E entardecendo como um dia trópico, Até ao fim inevitável guie Uma igual vida, súbito Precipite no abismo.
Ricardo Reis
Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas. Pouco pode o homem contra a externa vida. Deixa haver a injustiça. Nada muda, que mudes. Não tens mais reino que a doada mente. Essa, em que és servo, grato o Fado e os Deuses, Governa, até à fronteira, Onde a vontade finge. Aí vencido, tu por vencedores Os grandes deuses e o Destino ostentas. Não há a dupla derrota De derrota e vileza. Assim penso, e esta súbita justiça Com que queremos moderar as cousas, Expilo, como a um servo Intromissor da mente. Se nem de mim posso ser dono, como Quero ser dono ou lei do que acontece Onde me a mente e corpo <b><i> </i></b>Não são mais do que parte? Basta-me que me baste, e o resto gire Na órbita prevista, em que até os deuses Giram, sois centros servos De um movimento externo.
Álvaro de Campos
Faróis distantes, De luz subitamente tão acesa, De noite e ausência tão rapidamente volvida, Na noite, no convés, que consequências aflitas! Mágoa última dos despedidos, Ficção de pensar... Faróis distantes... Incerteza da vida... Voltou crescendo a luz acesa avançadamente, No acaso do olhar perdido... Faróis distantes... A vida de nada serve... Pensar na vida de nada serve... Pensar de pensar na vida de nada serve... Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande. Faróis distantes... 30/04/1926
Álvaro de Campos
Não: devagar. Devagar, porque não sei Onde quero ir. Há entre mim e os meus passos Uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou Uma diferença de verbo Que corresponde à realidade. Devagar... Sim, devagar... Quero pensar no que quer dizer Este devagar... Talvez o mundo exterior tenha pressa demais. Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo. Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima... Talvez isso tudo... Mas o que me preocupa é esta palavra devagar... O que é que tem que ser devagar? Se calhar é o universo... A verdade manda Deus que se diga. Mas ouviu alguém isso a Deus? 30/12/1934
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
Faróis distantes, De luz subitamente tão acesa, De noite e ausência tão rapidamente volvida, Na noite, no convés, que consequências aflitas! Mágoa última dos despedidos, Ficção de pensar... Faróis distantes... Incerteza da vida... Voltou crescendo a luz acesa avançadamente, No acaso do olhar perdido... Faróis distantes... A vida de nada serve... Pensar na vida de nada serve... Pensar de pensar na vida de nada serve... Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande. Faróis distantes... 30/04/1926
Álvaro de Campos
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime. Tudo o que diz o que não diz, E a alma sonha, diferente e distraída. Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!) 14/01/1933
Álvaro de Campos
Faróis distantes, De luz subitamente tão acesa, De noite e ausência tão rapidamente volvida, Na noite, no convés, que consequências aflitas! Mágoa última dos despedidos, Ficção de pensar... Faróis distantes... Incerteza da vida... Voltou crescendo a luz acesa avançadamente, No acaso do olhar perdido... Faróis distantes... A vida de nada serve... Pensar na vida de nada serve... Pensar de pensar na vida de nada serve... Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande. Faróis distantes... 30/04/1926
Álvaro de Campos
TRAPO O dia deu em chuvoso. A manhã, contudo, estava bastante azul. O dia deu em chuvoso. Desde manhã eu estava um pouco triste. Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma? Não sei: já ao acordar estava triste. O dia deu em chuvoso. Bem sei: a penumbra da chuva é elegante. Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? Dêem-me o céu azul e o sol visível. Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim. Hoje quero só sossego. Até amaria o lar, desde que o não tivesse. Chego a ter sono de vontade de ter sossego. Não exageremos! Tenho efectivamente sono, sem explicação. O dia deu em chuvoso. Carinhos? Afectos? São memórias... É preciso ser-se criança para os ter... Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! O dia deu em chuvoso. Boca bonita da filha do caseiro, Polpa de fruta de um coração por comer... Quando foi isso? não sei... No azul da manhã... O dia deu em chuvoso. 10/09/1930 (publicado na Presença, nº 31-32, Março-Junho de 1931)
Álvaro de Campos
REALIDADE Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos... Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou por isso – Nesta localidade da cidade... Há vinte anos!... O que eu era então! Ora, era outro... Há vinte anos, e as casas não sabem de nada... Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram! Sei eu o que é útil ou inútil?)... Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?) Tento reconstruir na minha imaginação Quem eu era e como era quando por aqui passava Há vinte anos... Não me lembro, não me posso lembrar. O outro que aqui passava então, Se existisse hoje, talvez se lembrasse... Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui! Sim, o mistério do tempo. Sim, o não se saber nada, Sim, o termos todos nascido a bordo. Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer... Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma, Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul. Hoje, se calhar, está o quê? Podemos imaginar tudo do que nada sabemos. Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada... Houve um dia que subi esta rua pensando alegremente no futuro, Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado. Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente. Quando muito, nem penso... Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora, Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento. Olhámos indiferentemente um para o outro. E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol. E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada. Talvez isto realmente se desse... Verdadeiramente se desse... Sim, carnalmente se desse... Sim, talvez... 15/12/1932
Álvaro de Campos
II Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades E a mão de mistério que abafa o bulício, E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida! Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios E que misterioso o fundo unânime das ruas, Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, Ó do «Sentimento de um Ocidental»! Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas. Que nem são países, nem momentos, nem vidas. Que desejo talvez de outros modos de estados de alma Humedece interiormente o instante lento e longínquo! Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem, Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas Como um mendigo de sensações impossíveis Que não sabe quem lhas possa dar... Quando eu morrer, Quando me for, ignobilmente, como toda a gente, Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente, Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece, Seja por esta hora condigna dos tédios que tive, Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima, Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece, Platão sonhando viu a ideia de Deus Esculpir corpo e existência nitidamente plausível. Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo. Seja por esta hora que me leveis a enterrar, Por esta hora que eu não sei como viver, Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho, Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva, Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas, Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar. Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter. Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas, Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria — Tu que me conheces — quem eu sou...
Álvaro de Campos
A coisa estranha e muda em todo o corpo, Que está ali, ebúrnea, no caixão, O corpo humano que não é corpo humano Que ali se cala em todo o ambiente; O cais deserto que ali aguarda o incógnito O assombro álgido ali entreabrindo A porta suprema e invisível; O nexo incompreensível Entre a energia e a vida, Ali janela para a noite infinita... Ele — o cadáver do outro, Evoca-me do futuro [Eu próprio dois?], ou nem assim... E embandeiro em arco a negro as minhas esperanças Minha fé cambaleia como uma paisagem de bêbedo, Meus projectos tocam um muro infinito até infinito.