Poemas de Mistério

Poesia enigmática que provoca a curiosidade e a fascinação, mergulhando em temas misteriosos e intrigantes.

Uma imagem com a seguinte frase Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.

Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.

Em certa noite de verão.


E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol

E da lua — melhor do que refulgiria

Um brilhante do Grão-Mogol.


Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:

— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,

Dize, quem foi que te ensinou?"


Então ela, voando e revoando, disse:

— "Eu sou a vida, eu sou a flor

Das graças, o padrão da eterna meninice,

E mais a glória, e mais o amor".


E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.


Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu

Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.


Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu

Um imenso colar de opala, e uma safira

Tirada ao corpo de Vixnu.


Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.


Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam - lhes de manso os aromados seios.

Voluptuosamente nus.


Vinha a glória depois;
—
quatorze reis vencidos,

E enfim as páreas triunfais

De trezentas nações, e os parabéns unidos

Das coroas ocidentais.


Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto

Das mulheres e dos varões,

Como em água que deixa o fundo descoberto,

Via limpos os corações.


Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.

Afeita a só carpintejar,

Com um gesto pegou na fulgurante mosca,

Curioso de a examinar.


Quis vê-la, quis saber a causa
do mistério.
E, fechando - a na mão, sorriu

De contente, ao pensar que ali tinha um império,

E para casa se partiu.


Alvoroçado chega, examina, e parece

Que se houve nessa ocupação

Miudamente, como um homem que quisesse

Dissecar a sua ilusão.


Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,

Rota, baça, nojenta, vil

Sucumbiu;
e
com isto esvaiu-se-lhe aquela

Visão fantástica e sutil.


Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo

Na cabeça, com ar taful

Dizem que ensandeceu e que não sabe como

Perdeu a sua mosca azul.

Joaquim Maria Machado de Assis

Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão. Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada. Em certa noite de verão. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua — melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão-Mogol. Um poleá que a viu, espantado e tristonho, Um poleá lhe perguntou: — "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que te ensinou?" Então ela, voando e revoando, disse: — "Eu sou a vida, eu sou a flor Das graças, o padrão da eterna meninice, E mais a glória, e mais o amor". E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo E tranqüilo, como um faquir, Como alguém que ficou deslembrado de tudo, Sem comparar, nem refletir. Entre as asas do inseto a voltear no espaço, Uma coisa me pareceu Que surdia, com todo o resplendor de um paço, Eu vi um rosto que era o seu. Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o colo nu Um imenso colar de opala, e uma safira Tirada ao corpo de Vixnu. Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, Aos pés dele, no liso chão, Espreguiçam sorrindo as suas graças finas, E todo o amor que têm lhe dão. Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios, Com grandes leques de avestruz, Refrescam - lhes de manso os aromados seios. Voluptuosamente nus. Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos, E enfim as páreas triunfais De trezentas nações, e os parabéns unidos Das coroas ocidentais. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em água que deixa o fundo descoberto, Via limpos os corações. Então ele, estendendo a mão calosa e tosca. Afeita a só carpintejar, Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. E, fechando - a na mão, sorriu De contente, ao pensar que ali tinha um império, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupação Miudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua ilusão. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baça, nojenta, vil Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Visão fantástica e sutil. Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo Na cabeça, com ar taful Dizem que ensandeceu e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul.

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Uma imagem com a seguinte frase A Ernesto Cibrão


Está naquela idade inquieta e duvidosa,

Que não é dia claro e é já o alvorecer;

Entreaberto botão, entrefechada rosa,

Um pouco de menina e um pouco de mulher.


Às vezes recatada, outras estouvadinha,

Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;

Tem cousas de criança e modos de mocinha,

Estuda o catecismo e lê versos de amor.


Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,

De cansaço talvez, talvez de comoção.

Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,

Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.


Outras vezes beijando a boneca enfeitada,

Olha furtivamente o primo que sorri;

E se corre parece, à brisa enamorada,

Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.


Quando a sala atravessa, é raro que não lance

Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar

Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance

Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.


Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,

A cama da boneca ao pé do toucador;

Quando sonha, repete, em santa companhia,

Os livros do colégio e o nome de um doutor.


Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;

E quando entra num baile, é já dama do tom;

Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;

Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.


Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo

Para ela é o estudo, excetuando-se talvez

A lição de sintaxe em que combina o verbo

To love, mas sorrindo ao professor de inglês.


Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,

Parece acompanhar uma etérea visão;

Quantas cruzando ao seio o delicado braço

Comprime as pulsações do inquieto coração!


Ah! se nesse momento, alucinado, fores

Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,

Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,

Rir da tua aventura e contá-la à mamã.


É que esta criatura, adorável, divina,

Nem se pode explicar, nem se pode entender:

Procura-se a mulher e encontra-se a menina,

Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!

Joaquim Maria Machado de Assis

A Ernesto Cibrão Está naquela idade inquieta e duvidosa, Que não é dia claro e é já o alvorecer; Entreaberto botão, entrefechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher. Às vezes recatada, outras estouvadinha, Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor; Tem cousas de criança e modos de mocinha, Estuda o catecismo e lê versos de amor. Outras vezes valsando, o seio lhe palpita, De cansaço talvez, talvez de comoção. Quando a boca vermelha os lábios abre e agita, Não sei se pede um beijo ou faz uma oração. Outras vezes beijando a boneca enfeitada, Olha furtivamente o primo que sorri; E se corre parece, à brisa enamorada, Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri. Quando a sala atravessa, é raro que não lance Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance Em que a dama conjugue o eterno verbo amar. Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia, A cama da boneca ao pé do toucador; Quando sonha, repete, em santa companhia, Os livros do colégio e o nome de um doutor. Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra; E quando entra num baile, é já dama do tom; Compensa-lhe a modista os enfados da mestra; Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon. Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo Para ela é o estudo, excetuando-se talvez A lição de sintaxe em que combina o verbo To love, mas sorrindo ao professor de inglês. Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço, Parece acompanhar uma etérea visão; Quantas cruzando ao seio o delicado braço Comprime as pulsações do inquieto coração! Ah! se nesse momento, alucinado, fores Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã, Hás de vê-la zombar de teus tristes amores, Rir da tua aventura e contá-la à mamã. É que esta criatura, adorável, divina, Nem se pode explicar, nem se pode entender: Procura-se a mulher e encontra-se a menina, Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!

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Uma imagem com a seguinte frase Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas?

Além desses outeiros

Vai descambando o sol, e à terra envia

Os raios derradeiros;

A tarde, como noiva que enrubesce,

Traz no rosto um véu mole e transparente;

No fundo azul a estrela do poente

Já tímida aparece.


Como um bafo suavíssimo da noite,

Vem sussurrando o vento,

As árvores agita e imprime às folhas

O beijo sonolento.

A flor ajeita o cálix: cedo espera

O orvalho, e entanto exala o doce aroma;

Do leito do oriente a noite assoma;

Como uma sombra austera.


Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,

Vem, minha flor querida;

Vem contemplar o céu, página santa

Que o amor a ler convida;

Da tua solidão rompe as cadeias;

Desde o teu sombrio e mudo asilo;

Encontrarás aqui o amor tranqüilo.
..

Que esperas? que receias?


Olha o templo de Deus, pomposo e grande;

Lá do horizonte oposto

A lua, como lâmpada, já surge

A alumiar teu rosto;

Os círios vão arder no altar sagrado,

Estrelinhas do céu que um anjo acende;

Olha como de bálsamos rescende

A c'roa do noivado.


Irão buscar-te em meio do caminho

As minhas esperanças;

E voltarão contigo, entrelaçadas

Nas tuas longas tranças;

No entanto eu preparei teu leito à sombra

Do limoeiro em flor; colhi contente

Folhas com que alastrei o solo ardente

De verde e mole alfombra.


Pelas ondas do tempo arrebatados,

Até à morte iremos,

Soltos ao longo do baixel da vida

Os esquecidos remos.

Firmes, entre o fragor da tempestade,

Gozaremos o bem que amor encerra,

Passaremos assim do sol da terra

Ao sol da eternidade.



Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária.


In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.48-49. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série brasileira

Joaquim Maria Machado de Assis

Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas? Além desses outeiros Vai descambando o sol, e à terra envia Os raios derradeiros; A tarde, como noiva que enrubesce, Traz no rosto um véu mole e transparente; No fundo azul a estrela do poente Já tímida aparece. Como um bafo suavíssimo da noite, Vem sussurrando o vento, As árvores agita e imprime às folhas O beijo sonolento. A flor ajeita o cálix: cedo espera O orvalho, e entanto exala o doce aroma; Do leito do oriente a noite assoma; Como uma sombra austera. Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos, Vem, minha flor querida; Vem contemplar o céu, página santa Que o amor a ler convida; Da tua solidão rompe as cadeias; Desde o teu sombrio e mudo asilo; Encontrarás aqui o amor tranqüilo. .. Que esperas? que receias? Olha o templo de Deus, pomposo e grande; Lá do horizonte oposto A lua, como lâmpada, já surge A alumiar teu rosto; Os círios vão arder no altar sagrado, Estrelinhas do céu que um anjo acende; Olha como de bálsamos rescende A c'roa do noivado. Irão buscar-te em meio do caminho As minhas esperanças; E voltarão contigo, entrelaçadas Nas tuas longas tranças; No entanto eu preparei teu leito à sombra Do limoeiro em flor; colhi contente Folhas com que alastrei o solo ardente De verde e mole alfombra. Pelas ondas do tempo arrebatados, Até à morte iremos, Soltos ao longo do baixel da vida Os esquecidos remos. Firmes, entre o fragor da tempestade, Gozaremos o bem que amor encerra, Passaremos assim do sol da terra Ao sol da eternidade. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.48-49. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série brasileira

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Uma imagem com a seguinte frase Eras pálida. E os cabelos,

Aéreos, soltos novelos,

Sobre as espáduas caíam.
..

Os olhos meio-cerrados

De volúpia e de ternura

Entre lágrimas luziam.
..

E os braços entrelaçados,

Como cingindo a ventura,

Ao teu seio me cingiram.
..


Depois, naquele delírio,

Suave, doce martírio

De pouquíssimos instantes

Os teus lábios sequiosos,

Frios trêmulos, trocavam

Os beijos mais delirantes,

E no supremo dos gozos

Ante os anjos se casavam

Nossas almas palpitantes.
..

Depois.
.. depois a verdade,

A fria realidade,

A solidão, a tristeza;

Daquele sonho desperto,

Olhei.
.. silêncio de morte

Respirava a natureza —

Era a terra, era o deserto,

Fora-se o doce transporte,

Restava a fria certeza.


Desfizera-se a mentira:

Tudo aos meus olhos fugira;

Tu e o teu olhar ardente,

Lábios trêmulos e frios,

O abraço longo e apertado,

O beijo doce e veemente;

Restavam meus desvarios,

E o incessante cuidado,

E a fantasia doente.


E agora te vejo. E fria

Tão outra estás da que eu via

Naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

Com o olhar indiferente,

Tão outro do olhar sonhado,

Que a minha alma de poeta

Não vê se a imagem presente

Foi a imagem do passado.


Foi, sim, mas visão apenas;

Daquelas visões amenas

Que à mente dos infelizes

Descem vivas e animadas,

Cheias de luz e esperança

E de celestes matizes:

Mas, apenas dissipadas,

Fica uma leve lembrança,

Não ficam outras raízes.


Inda assim, embora sonho,

Mas sonho doce e risonho,

Desse-me Deus que fingida

Tivesse aquela ventura

Noite por noite, hora a hora,

No que me resta de vida,

Que, já livre da amargura,

Alma, que em dores me chora,

Chorara de agradecida!

Joaquim Maria Machado de Assis

Eras pálida. E os cabelos, Aéreos, soltos novelos, Sobre as espáduas caíam. .. Os olhos meio-cerrados De volúpia e de ternura Entre lágrimas luziam. .. E os braços entrelaçados, Como cingindo a ventura, Ao teu seio me cingiram. .. Depois, naquele delírio, Suave, doce martírio De pouquíssimos instantes Os teus lábios sequiosos, Frios trêmulos, trocavam Os beijos mais delirantes, E no supremo dos gozos Ante os anjos se casavam Nossas almas palpitantes. .. Depois. .. depois a verdade, A fria realidade, A solidão, a tristeza; Daquele sonho desperto, Olhei. .. silêncio de morte Respirava a natureza — Era a terra, era o deserto, Fora-se o doce transporte, Restava a fria certeza. Desfizera-se a mentira: Tudo aos meus olhos fugira; Tu e o teu olhar ardente, Lábios trêmulos e frios, O abraço longo e apertado, O beijo doce e veemente; Restavam meus desvarios, E o incessante cuidado, E a fantasia doente. E agora te vejo. E fria Tão outra estás da que eu via Naquele sonho encantado! És outra, calma, discreta, Com o olhar indiferente, Tão outro do olhar sonhado, Que a minha alma de poeta Não vê se a imagem presente Foi a imagem do passado. Foi, sim, mas visão apenas; Daquelas visões amenas Que à mente dos infelizes Descem vivas e animadas, Cheias de luz e esperança E de celestes matizes: Mas, apenas dissipadas, Fica uma leve lembrança, Não ficam outras raízes. Inda assim, embora sonho, Mas sonho doce e risonho, Desse-me Deus que fingida Tivesse aquela ventura Noite por noite, hora a hora, No que me resta de vida, Que, já livre da amargura, Alma, que em dores me chora, Chorara de agradecida!

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Uma imagem com a seguinte frase DE QUANDO em quando aparece-nos o conto-do-vigário. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composição puderam receber integralmente os lucros do editor.



O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo de que muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de umas varas de plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela finura do genro; mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir, ao passo que Jacó passa por um varão arguto e hábil.



O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiaque, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu também, tinha notícia da rua indicada. Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado da Bahia, com vinte contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixara dezesseis, para os náufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega.



Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia tão boa ocasião de ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não, nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de remuneração.



– Não é preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar a êste o que traz aí consigo.



– Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao maço dos vinte; ação análoga à das varas de Jacó. O fazendeiro pegou do maço todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria ficado com o dinheiro, sem curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão, e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi então que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era de uma só cor, corno as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume.



A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o fazendeiro do Chiador correu logo a polícia; é o que fazem todos .
.. Mas a polícia, não podendo ir à cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas hábeis em fugir, como os heróis dos melodramas, não fez mais que distribuir o segundo milheiro do conto-do-vigário, mandando a notícia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edição.



Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever estudando o conto-do-vigário pelos séculos atras, as suas modificações segundo o tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. É seguramente maior o número das tragédias, tanta é a gente que se tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josué até aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanitárias, segundo telegramas de ontem, esforçam-se grandemente por sanear a cidade "empestada pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar livre". Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detestável fedor de gente morta não custa a vitória de um princípio. O conto é menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia à obra, é a feitura dela. O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, roas é conto, um conto especial, tão célebre como os outros, e mais lucrativo que nenhum.





ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3. p. 650-651. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira).

NOTAS: Terceira. Membros da Ordem Terceira da igreja católica. Voltaire. François-Marie Arouet (1694-1778), escritor francês que se colocou contra a intolerância. Boccaccio. Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor italiano criador da prosa literária de seu país. Andersen. Hans Christian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês que se notabilizou pelo elementos fantásticos de suas narrativas para crianças

Joaquim Maria Machado de Assis

DE QUANDO em quando aparece-nos o conto-do-vigário. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composição puderam receber integralmente os lucros do editor. O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo de que muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de umas varas de plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela finura do genro; mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir, ao passo que Jacó passa por um varão arguto e hábil. O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiaque, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu também, tinha notícia da rua indicada. Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado da Bahia, com vinte contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixara dezesseis, para os náufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega. Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia tão boa ocasião de ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não, nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de remuneração. – Não é preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar a êste o que traz aí consigo. – Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao maço dos vinte; ação análoga à das varas de Jacó. O fazendeiro pegou do maço todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria ficado com o dinheiro, sem curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão, e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi então que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era de uma só cor, corno as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume. A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o fazendeiro do Chiador correu logo a polícia; é o que fazem todos . .. Mas a polícia, não podendo ir à cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas hábeis em fugir, como os heróis dos melodramas, não fez mais que distribuir o segundo milheiro do conto-do-vigário, mandando a notícia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edição. Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever estudando o conto-do-vigário pelos séculos atras, as suas modificações segundo o tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. É seguramente maior o número das tragédias, tanta é a gente que se tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josué até aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanitárias, segundo telegramas de ontem, esforçam-se grandemente por sanear a cidade "empestada pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar livre". Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detestável fedor de gente morta não custa a vitória de um princípio. O conto é menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia à obra, é a feitura dela. O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, roas é conto, um conto especial, tão célebre como os outros, e mais lucrativo que nenhum. ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3. p. 650-651. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira). NOTAS: Terceira. Membros da Ordem Terceira da igreja católica. Voltaire. François-Marie Arouet (1694-1778), escritor francês que se colocou contra a intolerância. Boccaccio. Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor italiano criador da prosa literária de seu país. Andersen. Hans Christian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês que se notabilizou pelo elementos fantásticos de suas narrativas para crianças

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Uma imagem com a seguinte frase Canto VII


II


Eis que um sonho, agitando as asas brancas

Leve espalha no cérebro do Almada,

Como gotas de chuva rara e fina,

Um pó sutil de mágicas patranhas.

Sonha.
.. Em que há de sonhar o grão prelado?

Vê no espaço um ginete alto e possante

À solta galopando, e logo nele,

Elmo de ouro, armadura de aço fino,

A briosa figura de um guerreiro.

Tenta irritado o indômito cavalo

O cavaleiro sacudir na terra,

Mastiga o freio, empina-se, escoiceia,

Voa de norte a sul, de leste a oeste,

Ora, a pata veloz roça nos mares,

Ora, igual ao tufão, descose as nuvens,

Mas o galhardo cavaleiro as rédeas

Coas fortes mãos encurta, e pouco a pouco

O ríspido quadrúpede sossega

E pára no ar. No rosto do guerreiro

Vê as próprias feições o grande Almada,

Olhos, cabelos, boca, faces, tudo,

Tudo é dele. Ó prodígio! Voz solene

Do ponto mais recôndito do espaço,

Onde estrela não há, não há planeta,

Estas palavras singulares solta:

"O bravo cavaleiro és tu, prelado,

E o domado corcel é o teu rebanho,

Que embalde morde o freio e se rebela

Contra ti que hás vencido el-rei e o povo,

Tornando em cinzas o atrevido Mustre."


III


Deste agradável sonho consolado,

Abre o pastor os olhos, vira o corpo,

E outra vez adormece. Novo quadro

E diverso lhe pinta a fantasia.

Vê-se diante de provida mesa,

À direita do papa, e come e bebe

De cem bispos servido. Entusiasmado

Com as finezas de Alexandre Sétimo,

O prelado um discurso principia

Depois de haver tossido quatro vezes.

Os olhos fita num painel que estava

Na fronteira parede; a mão do artista

O belo e forte arcanjo debuxara

Que a Satanás venceu; às plantas suas

Jaz o eterno rebelde. Entrava apenas

No magnífico exórdio do discurso

O valoroso Almada, quando a tela

A tremer começou; subitamente

O brilhante Miguel desaparece,

E o diabo que ali prostrado fora

Toma a figura do execrando Mustre,

Levanta-se do chão; e com desprezo,

E com gesto de escárnio e de ameaça,

Os turvos olhos no prelado fita

E a devassa fatal nas mãos sustenta.

Pasmam do caso os circunstantes todos,

Enquanto o forte Almada tropeçando

Nas cadeiras, nos vasos, nas cortinas,

Foge aterrado, uma janela busca,

Dela, sem ver a altura, se despenha,

E de abismo em abismo vai rolando

Até cair da própria cama abaixo.


Imagem - 00010001



Publicado no livro Outras relíquias: prosa e verso (1910).


In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.269-270. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)


NOTA: Poema inacabado, composto de 8 cantos. O canto 7 é composto de 17 parte

Joaquim Maria Machado de Assis

Canto VII II Eis que um sonho, agitando as asas brancas Leve espalha no cérebro do Almada, Como gotas de chuva rara e fina, Um pó sutil de mágicas patranhas. Sonha. .. Em que há de sonhar o grão prelado? Vê no espaço um ginete alto e possante À solta galopando, e logo nele, Elmo de ouro, armadura de aço fino, A briosa figura de um guerreiro. Tenta irritado o indômito cavalo O cavaleiro sacudir na terra, Mastiga o freio, empina-se, escoiceia, Voa de norte a sul, de leste a oeste, Ora, a pata veloz roça nos mares, Ora, igual ao tufão, descose as nuvens, Mas o galhardo cavaleiro as rédeas Coas fortes mãos encurta, e pouco a pouco O ríspido quadrúpede sossega E pára no ar. No rosto do guerreiro Vê as próprias feições o grande Almada, Olhos, cabelos, boca, faces, tudo, Tudo é dele. Ó prodígio! Voz solene Do ponto mais recôndito do espaço, Onde estrela não há, não há planeta, Estas palavras singulares solta: "O bravo cavaleiro és tu, prelado, E o domado corcel é o teu rebanho, Que embalde morde o freio e se rebela Contra ti que hás vencido el-rei e o povo, Tornando em cinzas o atrevido Mustre." III Deste agradável sonho consolado, Abre o pastor os olhos, vira o corpo, E outra vez adormece. Novo quadro E diverso lhe pinta a fantasia. Vê-se diante de provida mesa, À direita do papa, e come e bebe De cem bispos servido. Entusiasmado Com as finezas de Alexandre Sétimo, O prelado um discurso principia Depois de haver tossido quatro vezes. Os olhos fita num painel que estava Na fronteira parede; a mão do artista O belo e forte arcanjo debuxara Que a Satanás venceu; às plantas suas Jaz o eterno rebelde. Entrava apenas No magnífico exórdio do discurso O valoroso Almada, quando a tela A tremer começou; subitamente O brilhante Miguel desaparece, E o diabo que ali prostrado fora Toma a figura do execrando Mustre, Levanta-se do chão; e com desprezo, E com gesto de escárnio e de ameaça, Os turvos olhos no prelado fita E a devassa fatal nas mãos sustenta. Pasmam do caso os circunstantes todos, Enquanto o forte Almada tropeçando Nas cadeiras, nos vasos, nas cortinas, Foge aterrado, uma janela busca, Dela, sem ver a altura, se despenha, E de abismo em abismo vai rolando Até cair da própria cama abaixo. Imagem - 00010001 Publicado no livro Outras relíquias: prosa e verso (1910). In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.269-270. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) NOTA: Poema inacabado, composto de 8 cantos. O canto 7 é composto de 17 parte

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Uma imagem com a seguinte frase Dos vates a antiga usança

Quis respeitoso seguir,

Ensaiando em anagrama

Teu doce nome exprimir;

Mas a mente em vão se cansa,

No desejo que me inflama

Nada me vem acudir.


Não desistindo da idéia,

Volto a ela sem cessar;

Diversos nomes invento,

Sem nenhum poder achar,

Que seja nome de idéia,

E se preste ao meu intento,

Sem o teu muito ocultar.


Vendo alfim que não podia

Teu anagrama fazer;

Que quantos eu inventava

Nada queriam dizer;

Uma idéia à fantasia,

Quando já nada esperava,

Me veio enfim socorrer.


Foi idéia luminosa,

Direi quase inspiração,

Pois que senti de repente

Palpitar-me o coração.

Sua força imperiosa

Foi tal, qu'eu obediente

Dei-lhe pronta execução.


De papel em uma fita

Teu lindo nome escrevi;

Pondo as letras separadas,

Co'a tesoura as dividi.

Cada solta letra escrita

Enrolei, e baralhadas,

Numa caixinha as meti.


Tudo ao acaso deixando,

Da sorte o cofre agitei;

E tirando-as de uma em uma,

Uma após outra as tracei.

Oh prodígio! Oh pasmo! Quando

Esta maravilha suma

De um mero acaso esperei?


Já Urânia — escrito estava!

Foi Amor quem o escreveu!

Não, não foi obra do acaso;

Teu nome veio do céu!

Aquele — já — me ordenava

Que da Urânia do Parnaso

Fosse o nome agora teu.


Que para mim renascida

A Musa Urânia serás.

Que ao céu e a Deus minha mente

Tu sempre levantarás.

Musa real, não fingida,

Unida a mim ternamente,

Celeste amor me terás.



Publicado no livro Urânia (1862).


In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194

José Gonçalves de Magalhães

Dos vates a antiga usança Quis respeitoso seguir, Ensaiando em anagrama Teu doce nome exprimir; Mas a mente em vão se cansa, No desejo que me inflama Nada me vem acudir. Não desistindo da idéia, Volto a ela sem cessar; Diversos nomes invento, Sem nenhum poder achar, Que seja nome de idéia, E se preste ao meu intento, Sem o teu muito ocultar. Vendo alfim que não podia Teu anagrama fazer; Que quantos eu inventava Nada queriam dizer; Uma idéia à fantasia, Quando já nada esperava, Me veio enfim socorrer. Foi idéia luminosa, Direi quase inspiração, Pois que senti de repente Palpitar-me o coração. Sua força imperiosa Foi tal, qu'eu obediente Dei-lhe pronta execução. De papel em uma fita Teu lindo nome escrevi; Pondo as letras separadas, Co'a tesoura as dividi. Cada solta letra escrita Enrolei, e baralhadas, Numa caixinha as meti. Tudo ao acaso deixando, Da sorte o cofre agitei; E tirando-as de uma em uma, Uma após outra as tracei. Oh prodígio! Oh pasmo! Quando Esta maravilha suma De um mero acaso esperei? Já Urânia — escrito estava! Foi Amor quem o escreveu! Não, não foi obra do acaso; Teu nome veio do céu! Aquele — já — me ordenava Que da Urânia do Parnaso Fosse o nome agora teu. Que para mim renascida A Musa Urânia serás. Que ao céu e a Deus minha mente Tu sempre levantarás. Musa real, não fingida, Unida a mim ternamente, Celeste amor me terás. Publicado no livro Urânia (1862). In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194

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Uma imagem com a seguinte frase Ó vagas de cabelos esparsas longamente,

Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,

E tendes o cristal dum lago refulgente

E a rude escuridão dum largo e negro mar;


Cabelos torrenciais daquela que me enleva,

Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus

No báratro febril da vossa grande treva,

Que tem cintilações e meigos céus de luz.


Deixai-me navegar, morosamente, a remos,

Quando ele estiver brando e livre de tufões,

E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos

E enchamos de harmonia as amplas solidões.


Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos

Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom

Como um licor renano a fermentar nos copos,

Abismo que se espraia em rendas de Alençon!


E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,

Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,

E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,

Entre o rumor banal do hinos triunfais;


Consente que eu aspire esse perfume raro,

Que exalas da cabeça erguida com fulgor,

Perfume que estonteia um milionário avaro

E faz morrer de febre um pobre sonhador.


Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,

E vais na direcção constante do querer,

Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,

Que fazem mansamente amar e enlanguescer.


E a tua cabeleira, errante pelas costas,

Suponho que te serve, em noites de Verão,

De flácido espaldar aonde te recostas

Se sentes o abandono e a morna prostração.


E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos,

Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor

Que antigamente deu, nos circos dos romanos,

Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.


................................................

................................................


Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,

Na vossa vastidão posso talvez morrer!

Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio

E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

Cesário Verde

Ó vagas de cabelos esparsas longamente, Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, E tendes o cristal dum lago refulgente E a rude escuridão dum largo e negro mar; Cabelos torrenciais daquela que me enleva, Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus No báratro febril da vossa grande treva, Que tem cintilações e meigos céus de luz. Deixai-me navegar, morosamente, a remos, Quando ele estiver brando e livre de tufões, E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos E enchamos de harmonia as amplas solidões. Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom Como um licor renano a fermentar nos copos, Abismo que se espraia em rendas de Alençon! E ó mágica mulher, ó minha Inigualável, Que tens o imenso bem de ter cabelos tais, E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável, Entre o rumor banal do hinos triunfais; Consente que eu aspire esse perfume raro, Que exalas da cabeça erguida com fulgor, Perfume que estonteia um milionário avaro E faz morrer de febre um pobre sonhador. Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos, E vais na direcção constante do querer, Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos, Que fazem mansamente amar e enlanguescer. E a tua cabeleira, errante pelas costas, Suponho que te serve, em noites de Verão, De flácido espaldar aonde te recostas Se sentes o abandono e a morna prostração. E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos, Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor Que antigamente deu, nos circos dos romanos, Um óleo para ungir o corpo ao gladiador. ................................................ ................................................ Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio, Na vossa vastidão posso talvez morrer! Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

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