Poemas de Mistério
Poesia enigmática que provoca a curiosidade e a fascinação, mergulhando em temas misteriosos e intrigantes.
Joaquim Maria Machado de Assis
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão. Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada. Em certa noite de verão. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua — melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão-Mogol. Um poleá que a viu, espantado e tristonho, Um poleá lhe perguntou: — "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que te ensinou?" Então ela, voando e revoando, disse: — "Eu sou a vida, eu sou a flor Das graças, o padrão da eterna meninice, E mais a glória, e mais o amor". E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo E tranqüilo, como um faquir, Como alguém que ficou deslembrado de tudo, Sem comparar, nem refletir. Entre as asas do inseto a voltear no espaço, Uma coisa me pareceu Que surdia, com todo o resplendor de um paço, Eu vi um rosto que era o seu. Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o colo nu Um imenso colar de opala, e uma safira Tirada ao corpo de Vixnu. Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, Aos pés dele, no liso chão, Espreguiçam sorrindo as suas graças finas, E todo o amor que têm lhe dão. Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios, Com grandes leques de avestruz, Refrescam - lhes de manso os aromados seios. Voluptuosamente nus. Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos, E enfim as páreas triunfais De trezentas nações, e os parabéns unidos Das coroas ocidentais. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em água que deixa o fundo descoberto, Via limpos os corações. Então ele, estendendo a mão calosa e tosca. Afeita a só carpintejar, Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. E, fechando - a na mão, sorriu De contente, ao pensar que ali tinha um império, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupação Miudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua ilusão. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baça, nojenta, vil Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Visão fantástica e sutil. Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo Na cabeça, com ar taful Dizem que ensandeceu e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul.
Joaquim Maria Machado de Assis
Noite: abrem-se as flores . . . Que esplendores! Cíntia sonha seus amores Pelo céu. Tênues as neblinas Às campinas Descem das colinas, Como um véu. Mãos em mãos travadas, Animadas, Vão aquelas fadas Pelo ar; Soltos os cabelos, Em novelos, Puros, louros, belos, A voar. — "Homem, nos teus dias Que agonias, Sonhos, utopias, Ambições; Vivas e fagueiras, As primeiras, Como as derradeiras Ilusões! — "Quantas, quantas vidas Vão perdidas, Pombas mal feridas Pelo mal! Anos após anos, Tão insanos, Vêm os desenganos Afinal. — "Dorme: se os pesares Repousares, Vês? — por estes ares Vamos rir; Mortas, não; festivas, E lascivas, Somos — horas vivas De dormir. —"
Joaquim Maria Machado de Assis
A Ernesto Cibrão Está naquela idade inquieta e duvidosa, Que não é dia claro e é já o alvorecer; Entreaberto botão, entrefechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher. Às vezes recatada, outras estouvadinha, Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor; Tem cousas de criança e modos de mocinha, Estuda o catecismo e lê versos de amor. Outras vezes valsando, o seio lhe palpita, De cansaço talvez, talvez de comoção. Quando a boca vermelha os lábios abre e agita, Não sei se pede um beijo ou faz uma oração. Outras vezes beijando a boneca enfeitada, Olha furtivamente o primo que sorri; E se corre parece, à brisa enamorada, Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri. Quando a sala atravessa, é raro que não lance Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance Em que a dama conjugue o eterno verbo amar. Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia, A cama da boneca ao pé do toucador; Quando sonha, repete, em santa companhia, Os livros do colégio e o nome de um doutor. Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra; E quando entra num baile, é já dama do tom; Compensa-lhe a modista os enfados da mestra; Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon. Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo Para ela é o estudo, excetuando-se talvez A lição de sintaxe em que combina o verbo To love, mas sorrindo ao professor de inglês. Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço, Parece acompanhar uma etérea visão; Quantas cruzando ao seio o delicado braço Comprime as pulsações do inquieto coração! Ah! se nesse momento, alucinado, fores Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã, Hás de vê-la zombar de teus tristes amores, Rir da tua aventura e contá-la à mamã. É que esta criatura, adorável, divina, Nem se pode explicar, nem se pode entender: Procura-se a mulher e encontra-se a menina, Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
Joaquim Maria Machado de Assis
Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas? Além desses outeiros Vai descambando o sol, e à terra envia Os raios derradeiros; A tarde, como noiva que enrubesce, Traz no rosto um véu mole e transparente; No fundo azul a estrela do poente Já tímida aparece. Como um bafo suavíssimo da noite, Vem sussurrando o vento, As árvores agita e imprime às folhas O beijo sonolento. A flor ajeita o cálix: cedo espera O orvalho, e entanto exala o doce aroma; Do leito do oriente a noite assoma; Como uma sombra austera. Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos, Vem, minha flor querida; Vem contemplar o céu, página santa Que o amor a ler convida; Da tua solidão rompe as cadeias; Desde o teu sombrio e mudo asilo; Encontrarás aqui o amor tranqüilo. .. Que esperas? que receias? Olha o templo de Deus, pomposo e grande; Lá do horizonte oposto A lua, como lâmpada, já surge A alumiar teu rosto; Os círios vão arder no altar sagrado, Estrelinhas do céu que um anjo acende; Olha como de bálsamos rescende A c'roa do noivado. Irão buscar-te em meio do caminho As minhas esperanças; E voltarão contigo, entrelaçadas Nas tuas longas tranças; No entanto eu preparei teu leito à sombra Do limoeiro em flor; colhi contente Folhas com que alastrei o solo ardente De verde e mole alfombra. Pelas ondas do tempo arrebatados, Até à morte iremos, Soltos ao longo do baixel da vida Os esquecidos remos. Firmes, entre o fragor da tempestade, Gozaremos o bem que amor encerra, Passaremos assim do sol da terra Ao sol da eternidade. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.48-49. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série brasileira
Joaquim Maria Machado de Assis
Já raro e mais escasso A noite arrasta o manto, E verte o último pranto Por todo o vasto espaço. Tíbio clarão já cora A tela do horizonte, E já de sobre o monte Vem debruçar-se a aurora À muda e torva irmã, Dormida de cansaço, Lá vem tomar o espaço A virgem da manhã. Uma por uma, vão As pálidas estrelas, E vão, e vão com elas Teus sonhos, coração. Mas tu, que o devaneio Inspiras do poeta, Não vês que a vaga inquieta Abre-te o úmido seio? Vai. Radioso e ardente, Em breve o astro do dia, Rompendo a névoa fria, Virá do roxo oriente. Dos íntimos sonhares Que a noite protegera, De tanto que eu vertera. Em lágrimas a pares. Do amor silencioso. Místico, doce, puro, Dos sonhos do futuro, Da paz, do etéreo gozo, De tudo nos desperta Luz de importuno dia; Do amor que tanto a enchia Minha alma está deserta. A virgem da manhã Já todo o céu domina . . . Espero-te, divina, Espero-te, amanhã.
Joaquim Maria Machado de Assis
O poeta chegara ao alto da montanha, E quando ia a descer a vertente do oeste, Viu uma cousa estranha, Uma figura má. Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, Num tom medroso e agreste Pergunta o que será. Como se perde no ar um som festivo e doce, Ou bem como se fosse Um pensamento vão, Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. Para descer a encosta O outro lhe deu a mão.
Joaquim Maria Machado de Assis
Eras pálida. E os cabelos, Aéreos, soltos novelos, Sobre as espáduas caíam. .. Os olhos meio-cerrados De volúpia e de ternura Entre lágrimas luziam. .. E os braços entrelaçados, Como cingindo a ventura, Ao teu seio me cingiram. .. Depois, naquele delírio, Suave, doce martírio De pouquíssimos instantes Os teus lábios sequiosos, Frios trêmulos, trocavam Os beijos mais delirantes, E no supremo dos gozos Ante os anjos se casavam Nossas almas palpitantes. .. Depois. .. depois a verdade, A fria realidade, A solidão, a tristeza; Daquele sonho desperto, Olhei. .. silêncio de morte Respirava a natureza — Era a terra, era o deserto, Fora-se o doce transporte, Restava a fria certeza. Desfizera-se a mentira: Tudo aos meus olhos fugira; Tu e o teu olhar ardente, Lábios trêmulos e frios, O abraço longo e apertado, O beijo doce e veemente; Restavam meus desvarios, E o incessante cuidado, E a fantasia doente. E agora te vejo. E fria Tão outra estás da que eu via Naquele sonho encantado! És outra, calma, discreta, Com o olhar indiferente, Tão outro do olhar sonhado, Que a minha alma de poeta Não vê se a imagem presente Foi a imagem do passado. Foi, sim, mas visão apenas; Daquelas visões amenas Que à mente dos infelizes Descem vivas e animadas, Cheias de luz e esperança E de celestes matizes: Mas, apenas dissipadas, Fica uma leve lembrança, Não ficam outras raízes. Inda assim, embora sonho, Mas sonho doce e risonho, Desse-me Deus que fingida Tivesse aquela ventura Noite por noite, hora a hora, No que me resta de vida, Que, já livre da amargura, Alma, que em dores me chora, Chorara de agradecida!
Joaquim Maria Machado de Assis
Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo. Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme. Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois esta criatura está em toda a obra; Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as forças dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
Joaquim Maria Machado de Assis
DE QUANDO em quando aparece-nos o conto-do-vigário. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composição puderam receber integralmente os lucros do editor. O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo de que muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de umas varas de plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e, havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela finura do genro; mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir, ao passo que Jacó passa por um varão arguto e hábil. O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiaque, estando em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua. Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu também, tinha notícia da rua indicada. Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado da Bahia, com vinte contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixara dezesseis, para os náufragos da Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega. Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia tão boa ocasião de ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não, nem o leitor, nem o fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de remuneração. – Não é preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar a êste o que traz aí consigo. – Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao maço dos vinte; ação análoga à das varas de Jacó. O fazendeiro pegou do maço todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria ficado com o dinheiro, sem curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada. Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão, e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi então que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era de uma só cor, corno as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos do costume. A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o fazendeiro do Chiador correu logo a polícia; é o que fazem todos . .. Mas a polícia, não podendo ir à cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas hábeis em fugir, como os heróis dos melodramas, não fez mais que distribuir o segundo milheiro do conto-do-vigário, mandando a notícia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edição. Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever estudando o conto-do-vigário pelos séculos atras, as suas modificações segundo o tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. É seguramente maior o número das tragédias, tanta é a gente que se tem estripado, esfaqueado, degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josué até aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanitárias, segundo telegramas de ontem, esforçam-se grandemente por sanear a cidade "empestada pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar livre". Lembrai-vos que eram mais de mil, e imaginai que o detestável fedor de gente morta não custa a vitória de um princípio. O conto é menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda assim ocupa lugar eminente nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia à obra, é a feitura dela. O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire, Boccaccio ou Andersen, roas é conto, um conto especial, tão célebre como os outros, e mais lucrativo que nenhum. ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3. p. 650-651. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira). NOTAS: Terceira. Membros da Ordem Terceira da igreja católica. Voltaire. François-Marie Arouet (1694-1778), escritor francês que se colocou contra a intolerância. Boccaccio. Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor italiano criador da prosa literária de seu país. Andersen. Hans Christian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês que se notabilizou pelo elementos fantásticos de suas narrativas para crianças
Joaquim Maria Machado de Assis
Canto VII II Eis que um sonho, agitando as asas brancas Leve espalha no cérebro do Almada, Como gotas de chuva rara e fina, Um pó sutil de mágicas patranhas. Sonha. .. Em que há de sonhar o grão prelado? Vê no espaço um ginete alto e possante À solta galopando, e logo nele, Elmo de ouro, armadura de aço fino, A briosa figura de um guerreiro. Tenta irritado o indômito cavalo O cavaleiro sacudir na terra, Mastiga o freio, empina-se, escoiceia, Voa de norte a sul, de leste a oeste, Ora, a pata veloz roça nos mares, Ora, igual ao tufão, descose as nuvens, Mas o galhardo cavaleiro as rédeas Coas fortes mãos encurta, e pouco a pouco O ríspido quadrúpede sossega E pára no ar. No rosto do guerreiro Vê as próprias feições o grande Almada, Olhos, cabelos, boca, faces, tudo, Tudo é dele. Ó prodígio! Voz solene Do ponto mais recôndito do espaço, Onde estrela não há, não há planeta, Estas palavras singulares solta: "O bravo cavaleiro és tu, prelado, E o domado corcel é o teu rebanho, Que embalde morde o freio e se rebela Contra ti que hás vencido el-rei e o povo, Tornando em cinzas o atrevido Mustre." III Deste agradável sonho consolado, Abre o pastor os olhos, vira o corpo, E outra vez adormece. Novo quadro E diverso lhe pinta a fantasia. Vê-se diante de provida mesa, À direita do papa, e come e bebe De cem bispos servido. Entusiasmado Com as finezas de Alexandre Sétimo, O prelado um discurso principia Depois de haver tossido quatro vezes. Os olhos fita num painel que estava Na fronteira parede; a mão do artista O belo e forte arcanjo debuxara Que a Satanás venceu; às plantas suas Jaz o eterno rebelde. Entrava apenas No magnífico exórdio do discurso O valoroso Almada, quando a tela A tremer começou; subitamente O brilhante Miguel desaparece, E o diabo que ali prostrado fora Toma a figura do execrando Mustre, Levanta-se do chão; e com desprezo, E com gesto de escárnio e de ameaça, Os turvos olhos no prelado fita E a devassa fatal nas mãos sustenta. Pasmam do caso os circunstantes todos, Enquanto o forte Almada tropeçando Nas cadeiras, nos vasos, nas cortinas, Foge aterrado, uma janela busca, Dela, sem ver a altura, se despenha, E de abismo em abismo vai rolando Até cair da própria cama abaixo. Imagem - 00010001 Publicado no livro Outras relíquias: prosa e verso (1910). In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.269-270. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) NOTA: Poema inacabado, composto de 8 cantos. O canto 7 é composto de 17 parte
Joaquim Maria Machado de Assis
Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro, E adornado com ricas pedrarias, Os mandarins escuta: — um sol parece De estrelas rodeado. Os mandarins discutem gravemente Cousas muito mais graves. E ele? Foge-lhe O pensamento inquieto e distraído Pela janela aberta. Além, no pavilhão de porcelana, Entre donas gentis está sentada A imperatriz, qual flor radiante e pura Entre viçosas folhas. Pensa no amado esposo, arde por vê-lo, Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque. .. Do imperador ao rosto um sopro chega De recendente brisa. "Vem dela este perfume", diz, e abrindo Caminho ao pavilhão da amada esposa, Deixa na sala, olhando-se em silêncio, Os mandarins pasmados. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Lira Chinesa. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.54. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) NOTA: Paráfrase de poema de Thu-Fu, poeta chinês, baseada em tradução em prosa feita por Judith Walter em 186
Joaquim Maria Machado de Assis
Taça d'água parece o lago ameno; Têm os bambus a forma de cabanas, Que as árvores em flor, mais altas, cobrem Com verdejantes tetos. As pontiagudas rochas entre flores, Dos pagodes o grave aspecto ostentam. .. Faz-me rir ver-te assim, ó natureza, Cópia servil dos homens. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Lira Chinesa. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.53. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira) NOTA: Paráfrase de poema de Han-Tiê, poeta chinês, baseada em tradução em prosa feita por Judith Walter em 186
Joaquim Maria Machado de Assis
Existe uma flor que encerra Celeste orvalho e perfume. Plantou-a em fecunda terra Mão benéfica de um nume. Um verme asqueroso e feio, Gerado em lodo mortal, Busca esta flor virginal E vai dormir-lhe no seio. Morde, sangra, rasga e mina, Suga-lhe a vida e o alento; A flor o cálix inclina; As folhas, leva-as o vento, Depois, nem resta o perfume Nos ares da solidão. .. Esta flor é o coração, Aquele verme o ciúme. Publicado no livro Falenas: Vária, Lira Chinesa, Uma Ode a Anacreonte, Pálida Elvira (1870). Poema integrante da série Vária. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.52. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira
José Gonçalves de Magalhães
Oh Beleza! Oh potência invencível, Que na terra despótica imperas; Se vibras teus olhos Quais duas esferas, Quem resiste a teu fogo terrível? Oh Beleza! Oh celeste harmonia, Doce aroma, que as almas fascina; Se exalas suave Tua voz divina, Tudo, tudo a teus pés se extasia. A velhice, do mundo cansada, A teu mando resiste somente; Porém que te importa A voz impotente, Que se perde, sem ser escutada? Diga embora que o teu juramento Não merece a menor confiança; Que a tua firmeza Está só na mudança; Que os teus votos são folhas ao vento. Tudo sei; mas se tu te mostrares Ante mim como um astro radiante, De tudo esquecido, Nesse mesmo instante, Farei tudo o que tu me ordenares. Se até hoje remisso não arde Em teu fogo amoroso meu peito, De estóica dureza Não é isto efeito; Teu vassalo serei cedo ou tarde. Infeliz tenho sido até agora, Que a meus olhos te mostras severa; Nem gozo a ventura, Que goza uma fera; Entretanto ninguém mais te adora. Eu te adoro como o anjo celeste, Que da vida os tormentos acalma; Oh vida da vida, Oh alma desta alma, Um teu riso sequer me não deste! Minha lira que triste ressoa, Minha lira por ti desprezada, Assim mesmo triste, Assim malfadada, Teu poder, teus encantos pregoa. Oh Beleza, meus dias bafeja, Em teu fogo minha alma devora; Verás de que modo Meu peito te adora, E que incenso ofertar-te deseja.
José Gonçalves de Magalhães
Dos vates a antiga usança Quis respeitoso seguir, Ensaiando em anagrama Teu doce nome exprimir; Mas a mente em vão se cansa, No desejo que me inflama Nada me vem acudir. Não desistindo da idéia, Volto a ela sem cessar; Diversos nomes invento, Sem nenhum poder achar, Que seja nome de idéia, E se preste ao meu intento, Sem o teu muito ocultar. Vendo alfim que não podia Teu anagrama fazer; Que quantos eu inventava Nada queriam dizer; Uma idéia à fantasia, Quando já nada esperava, Me veio enfim socorrer. Foi idéia luminosa, Direi quase inspiração, Pois que senti de repente Palpitar-me o coração. Sua força imperiosa Foi tal, qu'eu obediente Dei-lhe pronta execução. De papel em uma fita Teu lindo nome escrevi; Pondo as letras separadas, Co'a tesoura as dividi. Cada solta letra escrita Enrolei, e baralhadas, Numa caixinha as meti. Tudo ao acaso deixando, Da sorte o cofre agitei; E tirando-as de uma em uma, Uma após outra as tracei. Oh prodígio! Oh pasmo! Quando Esta maravilha suma De um mero acaso esperei? Já Urânia — escrito estava! Foi Amor quem o escreveu! Não, não foi obra do acaso; Teu nome veio do céu! Aquele — já — me ordenava Que da Urânia do Parnaso Fosse o nome agora teu. Que para mim renascida A Musa Urânia serás. Que ao céu e a Deus minha mente Tu sempre levantarás. Musa real, não fingida, Unida a mim ternamente, Celeste amor me terás. Publicado no livro Urânia (1862). In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194
Cesário Verde
Ó vagas de cabelos esparsas longamente, Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, E tendes o cristal dum lago refulgente E a rude escuridão dum largo e negro mar; Cabelos torrenciais daquela que me enleva, Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus No báratro febril da vossa grande treva, Que tem cintilações e meigos céus de luz. Deixai-me navegar, morosamente, a remos, Quando ele estiver brando e livre de tufões, E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos E enchamos de harmonia as amplas solidões. Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom Como um licor renano a fermentar nos copos, Abismo que se espraia em rendas de Alençon! E ó mágica mulher, ó minha Inigualável, Que tens o imenso bem de ter cabelos tais, E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável, Entre o rumor banal do hinos triunfais; Consente que eu aspire esse perfume raro, Que exalas da cabeça erguida com fulgor, Perfume que estonteia um milionário avaro E faz morrer de febre um pobre sonhador. Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos, E vais na direcção constante do querer, Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos, Que fazem mansamente amar e enlanguescer. E a tua cabeleira, errante pelas costas, Suponho que te serve, em noites de Verão, De flácido espaldar aonde te recostas Se sentes o abandono e a morna prostração. E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos, Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor Que antigamente deu, nos circos dos romanos, Um óleo para ungir o corpo ao gladiador. ................................................ ................................................ Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio, Na vossa vastidão posso talvez morrer! Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio E quero asfixiar-me em ondas de prazer.