Poemas de Mistério
Poesia enigmática que provoca a curiosidade e a fascinação, mergulhando em temas misteriosos e intrigantes.
Manuel Bandeira
Vida que morre e que subsiste Vária, absurda, sórdida, ávida, Má! Se me indagar um qualquer Repórter: "Que há de mais bonito No ingrato mundo?” Não hesito; Responderei: "De mais bonito Não sei dizer. Mas de mais triste, — De mais triste é uma mulher Grávida. Qualquer mulher grávida."
Manuel Bandeira
Eu vi uma rosa — Uma rosa branca — Sozinha no galho. No galho? Sozinha No jardim, na rua. Sozinha no mundo. Em torno, no entanto, Ao sol de mei-dia, Toda a natureza Em formas e cores E sons esplendia. Tudo isso era excesso. A graça essencial, Mistério inefável — Sobrenatural — Da vida e do mundo, Estava ali na rosa Sozinha no galho. Sozinha no tempo. Tão pura e modesta, Tão perto do chão, Tão longe na glória Da mística altura, Dir-se-ia que ouvisse Do arcanjo invisível As palavras santas De outra Anunciação. Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira
Você me conhece? (Frase dos mascarados de antigamente) — Você me conhece? — Não conheço não. — Ah, como fui bela! Tive grandes olhos, Que a paixão dos homens (Estranha paixão!) Fazia maiores... “Fazia infinitos. Diz: não me conheces? — Não conheço não. — Se eu falava, um mundo Irreal se abria À tua visão! Tu não me escutavas: Perdido ficavas Na noite sem fundo Do que eu te dizia... Era a minha fala Canto e persuasão... Pois não me conheces? — Não conheço não. — Choraste em meus braços... — Não me lembro não. — Por mim quantas vezes O sono perdeste E ciúmes atrozes Te despedaçaram! Por mim quantas vezes Quase tu mataste, Quase te mataste, Quase te mataram! Agora me fitas E não me conheces? — Não conheço não. Conheço é que a vida É sonho, ilusão. Conheço é que a vida, A vida é traição.
Manuel Bandeira
Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional.
Manuel Bandeira
Teu corpo dúbio, irresoluto De intersexual disputadíssima, Teu corpo, magro não, enxuto, Lavado, esfregado, batido, Destilado, asséptico, insípido E perfeitamente inodoro É o flagelo de minha vida, Ó esquizóide! ó leptossômica! Por ele sofro há bem dez anos (Anos que mais parecem séculos) Tamanhas atribulações, Que às vezes viro lobisomem. E estraçalhado de desejos Divago como os cães danados A horas mortas, por becos sórdidos! Põe paradeiro a este tormento! Liberta-me do atroz recalque! Vem ao meu quarto desolado Por estas sombras de convento, E propicia aos meus sentidos Atônitos, horrorizados A folha-morta, o parafuso. O trauma, o estupor, o decúbito!
Manuel Bandeira
A sombra imensa, a noite infinita enche o vale... E lá no fundo vem a voz Humilde e lamentosa Dos pássaros da treva. Em nós, — Em noss'alma criminosa, O pavor se insinua... Um carneiro bale. Ouvem-se pios funerais. Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua... E cadentes, metálicos, pontuais, Os tanoeiros do brejo, — Os vigias da noite silenciosa, Malham nos aguaçais. Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva A sombria massa Das serranias. O plenilúnio vai romper... Já da penumbra Lentamente reslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes. E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliquescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas. Enfim, cheia, serena, pura, Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, — À Lua Assoma à crista da montanha. Em sua luz se banha A solidão cheia de vozes que segredam... Em voluptuoso espreguiçar de forma nua As névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpas Suspensas no ar ao longo das escarpas. Lembram os rebanhos de carneiros Quando, Fugindo ao sola pino, Buscam oitões, adros hospitaleiros E lá quedam tranquúilos ruminando... Assim a névoa azul paira sonhando... As estrelas sorriem de escutar As baladas atrozes Dos sapos. E o luar úmido... fino... Amávico... tutelar... Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... Teresópolis, 1912
Manuel Bandeira
A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se! A mata hoje tem alguma coisa para dizer. E ulula, e contorce-se toda, como a atriz de uma pantomima trágica. Cada galho rebelado Inculca a mesma perdida ânsia. Todos eles sabem o mesmo segredo pânico. Ou então — é que pedem desesperadamente a mesma instante coisa. Que saberá a mata? Que pedirá a mata? Pedirá água? Mas a água despenhou-se há pouco, fustigando-a, escorraçando-a, saciando-a como aos alarves. Pedirá o fogo para a purificação das necroses milenárias? Ou não pede nada, e quer falar e não pode? Terá surpreendido o segredo da terra pelos ouvidos finíssimos das suas raízes? A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se! A mata está hoje como uma multidão em delírio coletivo. Só uma touça de bambus, à parte, Balouça... levemente... levemente... levemente... E parece sorrir do delírio geral. Petrópolis, 1921
Manuel Bandeira
É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia... Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha... No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada. (Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!) Um velho senta-se a meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia... Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância. Ei-lo que saca de um papel... Dobra-o direito, ajusta as pontas, E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas... Com outro moço que se cala. Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala: — É de política. Adiante uma senhora, magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra. E, junto dela, Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou sevinha. Se ela vier, mando matar Uma galinha." E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia...
Manuel Bandeira
Na sala obscura, onde branqueja A mancha ebúrnea do teclado, Morre e revive, expira, arqueja O estribilho desesperado. Um Pierrot de vestes de seda Negra, ele próprio toca e canta. O timbre múrmuro segreda Uma dor que sobe à garganta. E uma tristeza de tal sorte Vem nessa pobre voz humana, Que se pensa em fugir na morte À miséria cotidiana. Como a voz, também a mão geme. E na parede se debruça A sombra pálida, que treme, De uma garganta que soluça...
Manuel Bandeira
Eurico Alves, poeta baiano, Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito, Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant'Ana. Sou poeta da cidade. Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar O gás carbônico das salas de cinema. Como o pão que o diabo amassou. Bebo leite de lata. Falo com A., que é ladrão. Aperto a mão de B., que é assassino. Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores das madrugadas. Eurico Alves, poeta baiano, Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.
Manuel Bandeira
Muda e sem trégua Galopa a névoa, galopa a névoa. Minha janela desmantelada Dá para o vale do desalento. Sombrio vale! Não vejo nada Senão a névoa que toca o vento. Lá vão os dias de minha infância — Imagens rotas que se desmancham: O vento do largo na praia, O meu vestidinho de saia: Aquele corvo, o vôo torvo, O meu destino aquele corvo! O que eu cuidava do mundo mau! Os ladrões com cara de pau! As histórias que faziam sonhar; E os livros: Simplício olha pra o ar, João Felpudo, Viagem à roda do mundo Numa casquinha de noz. À nossa infância, ó minha irmã, tão longe de nós!
Manuel Bandeira
Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja, Repousa, embalsamado em óleos vegetais, O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja, Dançava descuidosa, e hoje não dança mais... Quem não a viu é bem provável que não veja Outro conjunto igual de partes naturais. Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja. E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais. A morte a surpreendeu um dia que sonhava. Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis À terra, sobre a qual tão de leve pesava... Eram as suas mãos mais lindas sem anéis... Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava... Seu destino foi curto e bom... — Não a choreis.
Manuel Bandeira
Não te afastes de mim, temendo a minha sanha E o meu veneno... Escuta a minha triste história: Aracne foi meu nome e na trama ilusória Das rendas florescia a minha graça estranha. Um dia desafiei Minerva. De tamanha Ousadia hoje espio a incomparável glória... Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória, Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha! Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura Inspiro horror... O tu que espias a urdidura Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia: Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis, Sob os quais incessante e vária a fantasia Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis... 1907
Manuel Bandeira
O que tu chamas tua paixão, E tão-somente curiosidade. E os teus desejos ferventes vão Batendo as asas na irrealidade... Curiosidade sentimental Do seu aroma, da sua pele. Sonhas um ventre de alvura tal, Que escuro o linho fique ao pé dele. Dentre os perfumes sutis que vêm Das suas charpas, dos seus vestidos, Isolar tentas o odor que tem A trama rara dos seus tecidos. Encanto a encanto, toda a prevês. Afagos longos, carinhos sábios, Carícias lentas, de uma maciez Que se diriam feitas por lábios... Tu te perguntas, curioso, quais Serão seus gestos, balbuciamento, Quando descerdes nas espirais Deslumbradoras do esquecimento... E acima disso, buscas saber Os seus instintos, suas tendências... Espiar-lhe na alma por conhecer O que há sincero nas aparências. E os teus desejos ferventes vão Batendo as asas na irrealidade... O que tu chamas tua paixão, É tão-somente curiosidade.
Manuel Bandeira
Bateram à minha porta, Fui abrir, não vi ninguém. Seria a alma da morta? Não vi ninguém, mas alguém Entrou no quarto deserto E o quarto logo mudou. Deitei-me na cama, e perto Da cama alguém se sentou. Seria a sombra da morta? Que morta? A inocência? A infância? O que concebido, abortou, Ou o que foi e hoje é só distância? Pois bendita a que voltou! Três vezes bendita a morta, Quem quer que ela seja, a morta Que bateu à minha porta. Rio, dezembro de 1947
Manuel Bandeira
Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito. Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade. 19 de maio de 1949
Manuel Bandeira
Atrás destas moitas, Nos troncos, no chão, Vi, traçado a sangue, O signo-salmão! Há larvas, há lêmures Atrás destas moitas. Mulas-sem-cabeça, Visagens afoitas. Atrás destas moitas Veio a Moura-Torta - Comer as mãozinhas Da menina morta! Há bruxas luéticas Atrás destas moitas, Segredando à aragem Amorosas coitas. Atrás destas moitas Vi um rio de fundas Águas deletérias, Paradas, imundas! Atrás destas moitas... — Que importa? Irei vê-las! Regiões mais sombrias Conheço. Sou poeta, Dentro d'alma levo, Levo três estrelas, Levo as três Marias! Petrópolis, 2 de janeiro de 1950
Manuel Bandeira
Não posso crer que se conceba Do amor senão o gozo físico! O meu amante morreu bêbado, E meu marido morreu tísico! Não sei entre que astutos dedos Deixei a rosa da inocência. Antes da minha pubescência Sabia todos os segredos... Fui de um... Fui de outro... Este era médico... Um, poeta... Outro, nem sei mais! Tive em meu leito enciclopédico Todas as artes liberais. Aos velhos dou o meu engulho. Aos férvidos, o que os esfrie. A artistas, a coquetterie Que inspira... E aos tímidos — o orgulho. Estes, caçõo-os e depeno-os: A canga fez-se para o boi... Meu claro ventre nunca foi De sonhadores e de ingênuos! E todavia se o primeiro Que encontro, fere toda a lira, Amanso. Tudo se me tira. Dou tudo. E mesmo... dou dinheiro... Se bate, então como o estremeço! Oh, a volúpia da pancada! Dar-me entre lágrimas, quebrada Do seu colérico arremesso... E o cio atroz se me não leva A valhacoutos de canalhas, É porque temo pela treva O fio fino das navalhas... Não posso crer que se conceba Do amor senão o gozo físico! O meu amante morreu bêbado, E meu marido morreu tísico!
Manuel Bandeira
Atrás de minha fronte esquálida, Que em insônias se mortifica, Brilha uma como chama pálida De pálida, pálida mica... Não a acendeu a ardente febre, Ai de mim, da consumpção hética Que esgalga, até que um dia a quebre, A minha carcaça caquética! Nem a alumiou a fantasia Por velar de rúbido pejo Aquela agitação sombria Que em pancadas de mau desejo Tortura o coração aflito, Sugere requintes de gozo, Por concriar — sonho infinito — O andrógino miraculoso! A chama que em suave lampejo A esquálida tez me ilumina, Não a ateou febre nem desejo, — Mas um beijo de Colombina