Poemas de Mistério
Poesia enigmática que provoca a curiosidade e a fascinação, mergulhando em temas misteriosos e intrigantes.
Álvaro de Campos
A FERNANDO PESSOA Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orpheu 1 Depois de doze minutos Do seu drama "O Marinheiro", Em que os mais ágeis e astutos Se sentem com sono e brutos, E de sentido nem cheiro, Diz uma das veladoras Com langorosa magia: De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda? Ora isso mesmo é que eu ia Perguntar a essas senhoras... 1915 (publicado na Solução Editora, nº 4, 1929)
Álvaro de Campos
Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se. Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo. Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina. 14/03/1931 (publicada na Presença, 2ª série, nº 1, Novembro de 1939)
Álvaro de Campos
Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se. Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo. Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina. 14/03/1931 (publicada na Presença, 2ª série, nº 1, Novembro de 1939)
Álvaro de Campos
Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas – Que elixires serão apregoados? Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós; Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos. E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte, As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado, As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém – Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível, Formem um Deus, e ocupem o mundo. Mas a mim, hoje, a mim Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas, Nos destinos que não desvendo, Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto Não há sossego, E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente! Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito. Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem. O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir, Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo. O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis? E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão? Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma, Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado, E o universo é absolutamente oco em torno de mim. O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser, E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma. Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho, E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação; Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu, Na minha alma vazia estou, E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre. Fúria fria do destino, Intersecção de tudo, Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos, Consequência de ter corpo e alma, E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro. 03/02/1927
Álvaro de Campos
A FERNANDO PESSOA Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orpheu 1 Depois de doze minutos Do seu drama "O Marinheiro", Em que os mais ágeis e astutos Se sentem com sono e brutos, E de sentido nem cheiro, Diz uma das veladoras Com langorosa magia: De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda? Ora isso mesmo é que eu ia Perguntar a essas senhoras... 1915 (publicado na Solução Editora, nº 4, 1929)
Álvaro de Campos
Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se. Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo. Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina. 14/03/1931 (publicada na Presença, 2ª série, nº 1, Novembro de 1939)
Álvaro de Campos
Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas – Que elixires serão apregoados? Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós; Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos. E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte, As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado, As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém – Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível, Formem um Deus, e ocupem o mundo. Mas a mim, hoje, a mim Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas, Nos destinos que não desvendo, Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto Não há sossego, E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente! Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito. Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem. O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir, Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo. O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis? E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão? Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma, Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado, E o universo é absolutamente oco em torno de mim. O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser, E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma. Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho, E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação; Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu, Na minha alma vazia estou, E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre. Fúria fria do destino, Intersecção de tudo, Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos, Consequência de ter corpo e alma, E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro. 03/02/1927
Álvaro de Campos
DACTILOGRAFIA Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano, Firmo o projecto, aqui isolado, Remoto até de quem eu sou. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tic-tac estalado das máquinas de escrever. Que náusea da vida! Que abjecção esta regularidade! Que sono este ser assim! Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros (Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância), Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho, Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve, Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes. Outrora. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tic-tac estalado das máquinas de escrever. Temos todos duas vidas: A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, Que é a prática, a útil, Aquela em que acabam por nos meter num caixão. Na outra não há caixões, nem mortes, Há só ilustrações de infância: Grandes livros coloridos, para ver mas não ler; Grandes páginas de cores para recordar mais tarde. Na outra somos nós, Na outra vivemos; Nesta morremos, que é o que viver quer dizer; Neste momento, pela náusea, vivo na outra... Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro. Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever. 19/12/1933 (publicado na Presença, nº 1, 2ª série, Novembro de 1939)
Álvaro de Campos
II Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades E a mão de mistério que abafa o bulício, E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida! Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios E que misterioso o fundo unânime das ruas, Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, Ó do «Sentimento de um Ocidental»! Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas. Que nem são países, nem momentos, nem vidas. Que desejo talvez de outros modos de estados de alma Humedece interiormente o instante lento e longínquo! Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem, Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas Como um mendigo de sensações impossíveis Que não sabe quem lhas possa dar... Quando eu morrer, Quando me for, ignobilmente, como toda a gente, Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente, Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece, Seja por esta hora condigna dos tédios que tive, Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima, Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece, Platão sonhando viu a ideia de Deus Esculpir corpo e existência nitidamente plausível. Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo. Seja por esta hora que me leveis a enterrar, Por esta hora que eu não sei como viver, Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho, Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva, Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas, Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar. Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter. Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas, Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria — Tu que me conheces — quem eu sou...
Álvaro de Campos
Mas não e só o cadáver Essa pessoa horrível que não é ninguém, Essa novidade abísmica do corpo usual, Esse desconhecido que aparece por ausência na pessoa que conhecemos, Esse abismo cavado entre vermos e entendermos — Não é só o cadáver que dói na alma com medo, Que põe um silêncio no fundo do coração, As coisas usuais externas de quem morreu Também perturbam a alma, mas com mais ternura no medo. Sejam de um inimigo, Quem pode ver sem saudade a mesa a que ele sentava, A caneta com que escrevia? Quem pode ver sem uma angústia própria A espingarda do caçador desaparecido sem ela para alívio de todos os montes? O casaco do mendigo morto, onde ele metia as mãos (já ausentes para sempre) na algibeira, Os brinquedos, horrivelmente arrumados já, da criança morta, Tudo isso me pesa de repente no entendimento estrangeiro E uma saudade do tamanho do espaço apavora-me a alma...
Álvaro de Campos
A alma humana é porca como um ânus E a Vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações. Meu coração desgosta-se de tudo com uma náusea do estômago. A Távola Redonda foi vendida a peso, E a biografia do Rei Artur, um galante escreveu-a. Mas a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas, como um perfil distante. Está frio. Ponho sobre os ombros o capote que me lembra um xaile — O xaile que minha tia me punha aos ombros na infância. Mas os ombros da minha infância sumiram-se antes para dentro dos meus ombros. E o meu coração da infância sumiu-se antes para dentro do meu coração. Sim, está frio... Está frio em tudo que sou, está frio... Minhas próprias ideias têm frio, como gente velha... E o frio que eu tenho das minhas ideias terem frio é mais frio do que elas. Engelho o capote à minha volta... O Universo da gente... a gente... as pessoas todas!... A multiplicidade da humanidade misturada Sim, aquilo a que chamam a vida, como se só houvesse outros e estrelas... Sim, a vida... Meus ombros descaem tanto que o capote resvala... Querem comentário melhor? Puxo-me para cima o capote. Ah, parte a cara à vida! Levanta-te com estrondo no sossego de ti!
Álvaro de Campos
Os mortos! Que prodigiosamente E com que horrível reminiscência Vivem na nossa recordação deles! A minha velha tia na sua antiga casa, no campo Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era... Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me... E, além disso, penso, ela já morreu há anos... Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um lusco-fusco... Penso, e todo o enigma do universo repassa-me. Revejo aquilo na imaginação com tal realidade Que depois, quando penso que aquilo acabou E que ela está morta, Encaro com o mistério mais palidamente Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo E nem choro, de atento que estou ao terror da vida... Como eu desejaria ser parte da noite, Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço Não propriamente um lugar, por não ter posição nem contornos, Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir... Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!... Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim... Pasmo de que coisa tão real pudesse passar... E não existir hoje e hoje ser tão diverso... Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista, Chega ao mar e perde-se no mar, Mas a água perde-se de si-própria? Uma coisa deixa de ser o que é absolutamente Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos E a nossa consciência exterior do Universo? Onde está hoje o meu passado? Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele? Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo? Tudo isto deve ter um sentido — talvez muito simples — Mas por mais que pense não atino com ele.
Álvaro de Campos
A alma humana é porca como um ânus E a Vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações. Meu coração desgosta-se de tudo com uma náusea do estômago. A Távola Redonda foi vendida a peso, E a biografia do Rei Artur, um galante escreveu-a. Mas a sucata da cavalaria ainda reina nessas almas, como um perfil distante. Está frio. Ponho sobre os ombros o capote que me lembra um xaile — O xaile que minha tia me punha aos ombros na infância. Mas os ombros da minha infância sumiram-se antes para dentro dos meus ombros. E o meu coração da infância sumiu-se antes para dentro do meu coração. Sim, está frio... Está frio em tudo que sou, está frio... Minhas próprias ideias têm frio, como gente velha... E o frio que eu tenho das minhas ideias terem frio é mais frio do que elas. Engelho o capote à minha volta... O Universo da gente... a gente... as pessoas todas!... A multiplicidade da humanidade misturada Sim, aquilo a que chamam a vida, como se só houvesse outros e estrelas... Sim, a vida... Meus ombros descaem tanto que o capote resvala... Querem comentário melhor? Puxo-me para cima o capote. Ah, parte a cara à vida! Levanta-te com estrondo no sossego de ti!
Álvaro de Campos
O pó que fica das velocidades que já se não vêem! O do metálico dos êmbolos, O furor uterino das válvulas lá por dentro — O sangue dando em baque ao ataque dos excêntricos. Minhas sensações Protoplasma da humanidade matemática do futuro! Eia-la-ho! Hó-oo-o! Oh lá, saltos e pulos com o meu pensamento todo Pula bola de mim — a mágica biológica que eu sou! O cérebro servo de leis, os nervos movidos por normas Por normas compostas em tratados de psiquiatras
Álvaro de Campos
Não ter deveres, nem horas certas, nem realidades... Ser uma ave humana Que passe haleyonica sobre a intransigência do mundo — Ganhando o pão da sua noite com o suor da fronte dos outros — Faz-tudo triste No coliseu com lágrimas, E compère antigo, um pouco mais cheio que Vénus de Milo, Na insubsistência dos acasos. E um pouco de sol, ao menos, para os sonhos onde não vivo.