Poemas de Mistério

Poesia enigmática que provoca a curiosidade e a fascinação, mergulhando em temas misteriosos e intrigantes.

Uma imagem com a seguinte frase Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas –
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém –
Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto
Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?
E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,
Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,
E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,
E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.
Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,
E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;
Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,
Na minha alma vazia estou,
E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,
Intersecção de tudo,
Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,
Consequência de ter corpo e alma,
E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

03/02/1927

Álvaro de Campos

Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas – Que elixires serão apregoados? Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós; Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos. E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte, As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado, As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém – Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível, Formem um Deus, e ocupem o mundo. Mas a mim, hoje, a mim Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas, Nos destinos que não desvendo, Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto Não há sossego, E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente! Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito. Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem. O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir, Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo. O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis? E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão? Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma, Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado, E o universo é absolutamente oco em torno de mim. O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser, E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma. Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho, E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação; Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu, Na minha alma vazia estou, E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre. Fúria fria do destino, Intersecção de tudo, Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos, Consequência de ter corpo e alma, E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro. 03/02/1927

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Uma imagem com a seguinte frase Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas –
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém –
Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto
Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?
E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,
Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,
E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,
E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.
Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,
E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;
Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,
Na minha alma vazia estou,
E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,
Intersecção de tudo,
Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,
Consequência de ter corpo e alma,
E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

03/02/1927

Álvaro de Campos

Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas – Que elixires serão apregoados? Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós; Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos. E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte, As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado, As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém – Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível, Formem um Deus, e ocupem o mundo. Mas a mim, hoje, a mim Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas, Nos destinos que não desvendo, Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto Não há sossego, E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente! Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito. Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem. O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir, Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo. O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis? E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão? Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma, Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado, E o universo é absolutamente oco em torno de mim. O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser, E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma. Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho, E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação; Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu, Na minha alma vazia estou, E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre. Fúria fria do destino, Intersecção de tudo, Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos, Consequência de ter corpo e alma, E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro. 03/02/1927

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Uma imagem com a seguinte frase II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.
Que nem são países, nem momentos, nem vidas.
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
— Tu que me conheces — quem eu sou...

Álvaro de Campos

II Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades E a mão de mistério que abafa o bulício, E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida! Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios E que misterioso o fundo unânime das ruas, Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, Ó do «Sentimento de um Ocidental»! Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas. Que nem são países, nem momentos, nem vidas. Que desejo talvez de outros modos de estados de alma Humedece interiormente o instante lento e longínquo! Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem, Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas Como um mendigo de sensações impossíveis Que não sabe quem lhas possa dar... Quando eu morrer, Quando me for, ignobilmente, como toda a gente, Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente, Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece, Seja por esta hora condigna dos tédios que tive, Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima, Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece, Platão sonhando viu a ideia de Deus Esculpir corpo e existência nitidamente plausível. Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo. Seja por esta hora que me leveis a enterrar, Por esta hora que eu não sei como viver, Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho, Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva, Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas, Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar. Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter. Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas, Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria — Tu que me conheces — quem eu sou...

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Uma imagem com a seguinte frase Os mortos! Que prodigiosamente
E com que horrível reminiscência
Vivem na nossa recordação deles!

A minha velha tia na sua antiga casa, no campo
Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era...
Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me...
E, além disso, penso, ela já morreu há anos...
Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um lusco-fusco...
Penso, e todo o enigma do universo repassa-me.
Revejo aquilo na imaginação com tal realidade
Que depois, quando penso que aquilo acabou
E que ela está morta,
Encaro com o mistério mais palidamente
Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo
E nem choro, de atento que estou ao terror da vida...

Como eu desejaria ser parte da noite,
Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço
Não propriamente um lugar, por não ter posição nem contornos,
Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados
E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir...

Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!...
Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim...
Pasmo de que coisa tão real pudesse passar...
E não existir hoje e hoje ser tão diverso...
Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista,
Chega ao mar e perde-se no mar,
Mas a água perde-se de si-própria?
Uma coisa deixa de ser o que é absolutamente
Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos
E a nossa consciência exterior do Universo?
Onde está hoje o meu passado?
Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele?
Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo?
Tudo isto deve ter um sentido — talvez muito simples —
Mas por mais que pense não atino com ele.

Álvaro de Campos

Os mortos! Que prodigiosamente E com que horrível reminiscência Vivem na nossa recordação deles! A minha velha tia na sua antiga casa, no campo Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era... Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me... E, além disso, penso, ela já morreu há anos... Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um lusco-fusco... Penso, e todo o enigma do universo repassa-me. Revejo aquilo na imaginação com tal realidade Que depois, quando penso que aquilo acabou E que ela está morta, Encaro com o mistério mais palidamente Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo E nem choro, de atento que estou ao terror da vida... Como eu desejaria ser parte da noite, Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço Não propriamente um lugar, por não ter posição nem contornos, Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir... Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!... Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim... Pasmo de que coisa tão real pudesse passar... E não existir hoje e hoje ser tão diverso... Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista, Chega ao mar e perde-se no mar, Mas a água perde-se de si-própria? Uma coisa deixa de ser o que é absolutamente Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos E a nossa consciência exterior do Universo? Onde está hoje o meu passado? Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele? Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo? Tudo isto deve ter um sentido — talvez muito simples — Mas por mais que pense não atino com ele.

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