Poemas sobre Empatia
Poesia que ressalta a importância da empatia, compreensão e solidariedade entre as pessoas.
Luís Vaz de Camões
Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís Vaz de Camões
Se pena por amar-vos se merece, Quem dela livre está? ou quem isento? Que alma, que razão, que entendimento Em ver-vos se não rende e obedece? Que mor glória na vida se oferece Que ocupar-se em vós o pensamento? Toda a pena cruel, todo o tormento Em ver-vos se não sente, mas esquece. Mas se merece pena quem amando Contínuo vos está, se vos ofende, O mundo matareis, que todo é vosso. Em mim, Senhora, podeis ir começando, Que claro se conhece e bem se entende Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Luís Vaz de Camões
Quem diz que Amor é falso ou enganoso, Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso. Amor é brando, é doce, e é piedoso. Quem o contrário diz não seja crido; Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens, e inda aos Deuses, odioso. Se males faz Amor em mim se vêem; Em mim mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia. Mas todas suas iras são de Amor; Todos os seus males são um bem, Que eu por todo outro bem não trocaria.
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Álvaro de Campos
Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma ideia abstracta, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, Porque ser inferior é diferente de ser superior, E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter, E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades, E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles, E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens. Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, Basta que ela exista para que tenha razão de ser. Estreito ao meu peito arfante num abraço comovido (No mesmo abraço comovido) O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece, O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria, E... E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças, O ladrão de estradas, o salteador dos mares, O gatuno de carteiras, o sombra que espera nas vielas — Todos são a minha amante predilecta pelo menos um momento na vida. Beijo na boca todas as prostitutas, Beijo sobre os olhos todos os souteneurs, A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos, E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões. Tudo é razão de ser da minha vida. Cometi todos os crimes, Vivi dentro de todos os crimes (Eu próprio fui, não um nem o outro no vício, Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida). Multipliquei-me para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me entreguei-me. E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, E todos os pederastas — absolutamente todos (não faltou nenhum). Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim! Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta, A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados... Mary, eu sou infeliz... Freddie, eu sou infeliz... Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados, Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis, Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco — Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjectivo universo, Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!) Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim... Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco, Meu coração rendez-vous de toda a humanidade, Meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa, («Aqui estuvo ei Manolo en visperas de ir al patibulo») Meu coração club, sala, plateia, capacho, guichet, portaló, Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial, Meu coração postigo, Meu coração encomenda, Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega, Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice, Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração. Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. Todas as auroras raiam no mesmo lugar: Infinito... Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta, Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore, E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho... Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra, Rola, auroreada, entardecida, a prumo sobre sóis, nocturna, Rola no espaço abstracto, na noite mal iluminada realmente Rola e (...) Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra, E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto, Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas, A Meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo (...) Ah, não estar parado nem a andar, Não estar deitado nem de pé, Nem acordado nem a dormir, Nem aqui nem noutro ponto qualquer, Resolver a equação desta inquietação prolixa, Saber onde estar para poder estar em toda a parte, Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas, Saber onde (...) Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas, Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas, Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas... Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques, Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos, Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias, Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la...... Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas, Cavalgada energética por dentro de todas as energias, Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde De todos os consumos de energia Cavalgada de mil amperes, [...] Cavalgada explosiva, explodida como uma bomba que rebenta Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo, Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo, Galga, cavalo electrão — ião —, sistema solar resumido Por dentro da acção dos êmbolos, por fora do giro dos volantes. Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstracta e louca, Ajo a ferro e velocidade, vai-vem, loucura, raiva contida, Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas, E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim. Ho-ho-ho-ho-ho... Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo Adiante da própria ideia veloz do corpo projectado, Com espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa, He-la-ho-ho... Helahoho. Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo... A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel, E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa. Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente, Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo, Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca... Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo! Ave. salve, viva a igualdade de tudo em seta! Ave, salve, viva a grande máquina universo! Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis, Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstractas, A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna, A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso, O resto, o estático resto que fica nos olhos que param, Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves, Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem, Nos meus nervos locomotiva, carro-eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor, Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a electricidade, Máquina universal movida por correias de todos os momentos! Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio! Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele! Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te Por todos os precipícios abaixo E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração! À moi, todos os objectos projécteis! À moi, todos os objectos direcções! À moi, todos os objectos invisíveis de velozes! Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me! Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso! A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim! Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias, Velocidade entra por todas as ideias dentro, Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os, Chamusca todos os ideais humanitários e úteis, Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes, Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado Os corpos de todas as filosofias, os trapos de todos os poemas, Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstracto nos ares, Senhor supremo da hora europeia metálico e cio. Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus! Vamos que mesmo eu fique atrás da cavalgada, que eu fique Arrastado à cauda do cavalo, torcido, rasgado, perdido Em queda, meu corpo e minha alma atrás da minha ânsia abstracta Da minha ânsia vertiginosa de ultrapassar o universo, De deixar Deus atrás como um marco miliário nulo, De deixar o m(...) Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói. Declina dentro de mim o sol no alto do céu. Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstracta, Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, Calcar, calcar, calcar até não sentir... Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou, (...) Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos, Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços, Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago, Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo-eu. Helahoho-o-o-o-o-o-o-o... Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Ricardo Reis
Vivem em nós inúmeros, Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos, Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu escrevo. 13/11/1935
Álvaro de Campos
Dá-nos a Tua paz, Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos Nascem para a emoção rezada a ti; Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina; Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer, Como o rasto na terra, mas a alma é sensível... Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca, A Tua paz no mundo que julgas Teu, A Tua paz impossível tão possível à Terra, À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós. Dá-nos a paz como uma brisa saindo Ou a chuva para a qual há preces nas províncias, E chove por leis naturais tranquilizadoramente. Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala, Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida Com o poder iludir a vida com o sonho... Dá-nos a tua paz. O mundo é incerto e confuso, O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra, O braço não alcança mais do que a mão pode conter, O olhar não atravessa os muros da sombra, O coração não sabe desejar o que deseja A vida erra constantemente o caminho para a Vida. Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas, Dá-nos a paz e admite Nos vales esquecidos dos pastores ignotos Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos, Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades, A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer. Materna paz que adormeça a terra, Dormente à lareira sem filosofias, Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora, A canção do berço revivida através do menino sem futuro, O calor, a ama, o menino, O menino que se vai deitar E o sentido inútil da vida, O coveiro antigo das coisas, A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos Do mundo...
Álvaro de Campos
Dá-nos a Tua paz, Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos Nascem para a emoção rezada a ti; Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina; Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer, Como o rasto na terra, mas a alma é sensível... Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca, A Tua paz no mundo que julgas Teu, A Tua paz impossível tão possível à Terra, À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós. Dá-nos a paz como uma brisa saindo Ou a chuva para a qual há preces nas províncias, E chove por leis naturais tranquilizadoramente. Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala, Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida Com o poder iludir a vida com o sonho... Dá-nos a tua paz. O mundo é incerto e confuso, O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra, O braço não alcança mais do que a mão pode conter, O olhar não atravessa os muros da sombra, O coração não sabe desejar o que deseja A vida erra constantemente o caminho para a Vida. Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas, Dá-nos a paz e admite Nos vales esquecidos dos pastores ignotos Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos, Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades, A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer. Materna paz que adormeça a terra, Dormente à lareira sem filosofias, Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora, A canção do berço revivida através do menino sem futuro, O calor, a ama, o menino, O menino que se vai deitar E o sentido inútil da vida, O coveiro antigo das coisas, A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos Do mundo...
Álvaro de Campos
Minha oração-cavalgada! Minha saudação-arranco! Quem como tu sentiu a vida individual de tudo? Quem como tu esgotou sentir-se — a vida — sentir-nos? Quem como tu tem sempre o sobresselente por próprio E transborda por norma da norma — forma da Vida? (...) a minha alegria é uma raiva, o meu arranco um choque (Pá!) em mim... Saúdo-te em ti ó Mestre da minha doença de saúde, o primeiro doente perfeito da universalite que tenho o caso-nome do “mal de Whitman” que há dentro de mim! St. Walt dos Delírios Ruidosos e a Raiva!
Álvaro de Campos
Todas as horas faço gaffes de civilidade e etiqueta (A vida social é complexa para a minha fraqueza de nervos) Mas nunca existiu quem só tivesse vivido em alma Numa eterna luta de Janus. Arre, a humanidade é uma coisa muito complexa... Tenho-a observado com os olhos e os nervos, e ainda não percebi. (Compreender é um navio ao longe) Toda a gente que tenho conhecido Estou farto de semi-deuses! Onde é que há gente no mundo? Não tenho um amigo, um conhecido, em quem batessem Ninguém que eu conheça perdeu o amor de uma mulher. Tenho feito muitas coisas más, muitas coisas reles, muitas infâmias. Tenho sido cobarde, revoltante, sujo. Não encontro ninguém assim. Todos têm sido príncipes, os que têm andado comigo
Álvaro de Campos
Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar. A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva. Quero dizer: custa sentir em dias de chuva. Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu. Com que então problema sexual? Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência. Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia — Mas isso é estúpido, filho. O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido. O problema existe para estar resolvido e não para preocupar. Compreender é ser impotente. E você devia revelar-se menos. "La Colére de Samson", conhece? "La femme, enfant malade et [...]" Mas não é nada disso. Não me mace, nem me obrigue a ter pena! Olhe: tudo é literatura. Vem-nos tudo de fora, como a chuva. A maneira? Se nós somos páginas aplicadas de romances? Traduções, meu filho. Você sabe porque está tão triste? É por causa de Platão, Que você nunca leu. E um soneto de Petrarca, que você desconhece, sobrou-lhe errado, E assim é a vida. Arregace as mangas da camisa civilizada E cave terras exactas! Mais vale isso que ter a alma dos outros. Não somos senão fantasmas de fantasmas, E a paisagem hoje ajuda muito pouco. Tudo é geograficamente exterior. A chuva cai por uma lei natural E a humanidade ama porque ama falar no amor.
Ricardo Reis
Vivem em nós inúmeros, Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos, Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu escrevo. 13/11/1935
Raimundo Correia
Se a cólera que espuma, a dor que mora N'alma, e destrói cada ilusão que nasce Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse; Se se pudesse, o espírito que chora, Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa!
Manuel Bandeira
O autêntico poeta, dileto Meu crítico e companheirão, Deu-me a maior prova de afeto De que eu podia ser objeto: Fez-me tio por adoção. Prudente! Prudente e discreto Como o avô, o Santo Varão. Bem grande avô! Bem grande neto, O autêntico! Tomo aqui o tom mais circunspeto E dou a bênção — ou benção, Como seria mais correto — Ao sobrinho do coração, A Prudente de Morais Neto, O autêntico.