Poemas sobre Amor-próprio
Poesia que ressalta a importância do amor e respeito por si mesmo, promovendo a autoestima.
Florbela Espanca
Ser a moça mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bênção do Senhor em cada filho. Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... Com o luar matar a sede ao gado, Dar às pombas o sol num grão de milho... Ser pura como a água da cisterna, Ter confiança numa vida eterna Quando descer à "terra da verdade"... Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de princesa, E todos os meus reinos de ansiedade.
Álvaro de Campos
Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma ideia abstracta, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, Porque ser inferior é diferente de ser superior, E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter, E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades, E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles, E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens. Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, Basta que ela exista para que tenha razão de ser. Estreito ao meu peito arfante num abraço comovido (No mesmo abraço comovido) O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece, O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria, E... E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças, O ladrão de estradas, o salteador dos mares, O gatuno de carteiras, o sombra que espera nas vielas — Todos são a minha amante predilecta pelo menos um momento na vida. Beijo na boca todas as prostitutas, Beijo sobre os olhos todos os souteneurs, A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos, E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões. Tudo é razão de ser da minha vida. Cometi todos os crimes, Vivi dentro de todos os crimes (Eu próprio fui, não um nem o outro no vício, Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida). Multipliquei-me para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me entreguei-me. E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, E todos os pederastas — absolutamente todos (não faltou nenhum). Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim! Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta, A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados... Mary, eu sou infeliz... Freddie, eu sou infeliz... Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados, Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis, Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco — Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjectivo universo, Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!) Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim... Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco, Meu coração rendez-vous de toda a humanidade, Meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa, («Aqui estuvo ei Manolo en visperas de ir al patibulo») Meu coração club, sala, plateia, capacho, guichet, portaló, Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial, Meu coração postigo, Meu coração encomenda, Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega, Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice, Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração. Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. Todas as auroras raiam no mesmo lugar: Infinito... Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta, Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore, E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho... Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra, Rola, auroreada, entardecida, a prumo sobre sóis, nocturna, Rola no espaço abstracto, na noite mal iluminada realmente Rola e (...) Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra, E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto, Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas, A Meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo (...) Ah, não estar parado nem a andar, Não estar deitado nem de pé, Nem acordado nem a dormir, Nem aqui nem noutro ponto qualquer, Resolver a equação desta inquietação prolixa, Saber onde estar para poder estar em toda a parte, Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas, Saber onde (...) Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas, Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas, Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas... Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques, Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos, Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias, Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la...... Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas, Cavalgada energética por dentro de todas as energias, Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde De todos os consumos de energia Cavalgada de mil amperes, [...] Cavalgada explosiva, explodida como uma bomba que rebenta Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo, Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo, Galga, cavalo electrão — ião —, sistema solar resumido Por dentro da acção dos êmbolos, por fora do giro dos volantes. Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstracta e louca, Ajo a ferro e velocidade, vai-vem, loucura, raiva contida, Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas, E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim. Ho-ho-ho-ho-ho... Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo Adiante da própria ideia veloz do corpo projectado, Com espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa, He-la-ho-ho... Helahoho. Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo... A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel, E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa. Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente, Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo, Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca... Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo! Ave. salve, viva a igualdade de tudo em seta! Ave, salve, viva a grande máquina universo! Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis, Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstractas, A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna, A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso, O resto, o estático resto que fica nos olhos que param, Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves, Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem, Nos meus nervos locomotiva, carro-eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor, Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a electricidade, Máquina universal movida por correias de todos os momentos! Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio! Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele! Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te Por todos os precipícios abaixo E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração! À moi, todos os objectos projécteis! À moi, todos os objectos direcções! À moi, todos os objectos invisíveis de velozes! Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me! Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso! A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim! Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias, Velocidade entra por todas as ideias dentro, Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os, Chamusca todos os ideais humanitários e úteis, Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes, Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado Os corpos de todas as filosofias, os trapos de todos os poemas, Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstracto nos ares, Senhor supremo da hora europeia metálico e cio. Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus! Vamos que mesmo eu fique atrás da cavalgada, que eu fique Arrastado à cauda do cavalo, torcido, rasgado, perdido Em queda, meu corpo e minha alma atrás da minha ânsia abstracta Da minha ânsia vertiginosa de ultrapassar o universo, De deixar Deus atrás como um marco miliário nulo, De deixar o m(...) Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói. Declina dentro de mim o sol no alto do céu. Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstracta, Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, Calcar, calcar, calcar até não sentir... Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou, (...) Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos, Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços, Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago, Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo-eu. Helahoho-o-o-o-o-o-o-o... Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...
Florbela Espanca
Diluído numa taça de ouro a arder Toledo é um rubi. E hoje é só nosso! O sol a rir...Viv ́alma...Não esboço Um gesto que me não sinta esvaecer... As tuas mãos tateiam-me a tremer... Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço, É como um jasmineiro em alvoroço Ébrio de sol, de aroma, de prazer! Cerro um pouco o olhar, onde subsiste Um romântico apelo vago e mudo - Um grande amor é sempre grave e triste. Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo... Uma torre ergue ao céu um grito agudo... Tua boca desfolha-me num beijo...
Florbela Espanca
Frêmito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas mãos na tua pele Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, Doído anseio dos meus braços a abraçar-te, Olhos buscando os teus por toda a parte, Sede de beijos, amargor de fel, Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada existe que a mitigue e a farte! E vejo-te tão longe! Sinto tua alma Junto da minha, uma lagoa calma, A dizer-me, a cantar que não me amas... E o meu coração que tu não sentes, Vai boiando ao acaso das correntes, Esquife negro sobre um mar de chamas...
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há-de dizer. Fala: parece que mente... Cala: parece esquecer... Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse P'ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar... 1928
Ricardo Reis
Quero ignorado, e calmo Por ignorado, e próprio Por calmo, encher meus dias De não querer mais deles. Aos que a riqueza toca O ouro irrita a pele. Aos que a fama bafeja Embacia-se a vida. Aos que a felicidade É sol, virá a noite. Mas ao que nada espera Tudo que vem é grato. 02/03/1933
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. «Que importa?» Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar se veio. «Quem tem de ser?» Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão 13/01/1920
Fernando Pessoa
Quanto fui peregrino Do meu próprio destino! Quanta vez desprezei O lar que sempre amei! Quanta vez rejeitando O que quisera ter, Fiz dos versos um brando Refúgio de não ser! E quanta vez, sabendo Que a mim estava esquecendo, E que quanto vivi – Tanto era o que perdi – Como o orgulhoso pobre Ao rejeitado lar Volvi o olhar, vil nobre Fidalgo só no chorar... Mas quanta vez descrente Do ser insubsistente Com que no Carnaval Da minha alma irreal Vestira o que sentisse Vi quem era quem não sou E tudo o que não disse Os olhos me turvou... Então, a sós comigo, Sem me ter por amigo, Criança ao pé dos céus, Pus a mão na de Deus. E no mistério escuro Senti a antiga mão Guiar-me, e fui seguro Como a quem deram pão. Por isso, a cada passo Que meu ser triste e lasso Sente sair do bem Que a alma, se é própria, tem, Minha mão de criança Sem medo nem esperança Para aquele que sou Dou na de Deus e vou. 07/10/1930
Ricardo Reis
Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam.
Manuel Bandeira
Por um lado te vejo como um seio murcho Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário És vermelha como o amor divino Dentro de ti em pequenas pevides Palpita a vida prodigiosa Infinitamente E quedas tão simples Ao lado de um talher Num quarto pobre de hotel. Petrópolis, 25.2.1938
Ricardo Reis
Tirem-me os deuses Em seu arbítrio Superior e urdido às escondidas O Amor, glória e riqueza. Tirem, mas deixem-me, Deixem-me apenas A consciência lúcida e solene Das coisas e dos seres. Pouco me importa Amor ou glória. A riqueza é um metal, a glória é um eco E o amor uma sombra. Mas a concisa Atenção dada Às formas e às maneiras dos objectos Tem abrigo seguro. Seus fundamentos São todo o mundo, Seu amor é o plácido Universo, Sua riqueza a vida. A sua glória É a suprema Certeza da solene e clara posse Das formas dos objectos. O resto passa, E teme a morte. Só nada teme ou sofre a visão clara E inútil do Universo. Essa a si basta, Nada deseja Salvo o orgulho de ver sempre claro Até deixar de ver. 06/06/1915