Poemas de Aventura
Versos que exploram a emoção e a adrenalina das aventuras, tanto físicas quanto emocionais.
Álvaro de Campos
SAUDAÇÃO Um comboio de criança movido a corda, puxado a cordel Tem mais movimento real do que os nossos versos... Os nossos versos que não têm rodas Os nossos versos que não se deslocam Os nossos versos que, nunca lidos, não saem para fora do papel. (Estou farto — farto da vida, farto da arte —, Farto de não ter coisas, a menos ou a medo — Rabo-leva da minha respiração chagando a minha vida, Fantoche absurdo de feira da minha ideia de mim. Quando é que parte o último comboio?) Sei que cantar-te assim não é cantar-te — mas que importa? Sei que é cantar tudo, mas cantar tudo é cantar-te, Sei que é cantar-me a mim — mas cantar-me a mim é cantar-te a ti Sei que dizer que não posso cantar é cantar-te, WaIt, ainda...
Álvaro de Campos
A coisa estranha e muda em todo o corpo, Que está ali, ebúrnea, no caixão, O corpo humano que não é corpo humano Que ali se cala em todo o ambiente; O cais deserto que ali aguarda o incógnito O assombro álgido ali entreabrindo A porta suprema e invisível; O nexo incompreensível Entre a energia e a vida, Ali janela para a noite infinita... Ele — o cadáver do outro, Evoca-me do futuro [Eu próprio dois?], ou nem assim... E embandeiro em arco a negro as minhas esperanças Minha fé cambaleia como uma paisagem de bêbedo, Meus projectos tocam um muro infinito até infinito.
Álvaro de Campos
2ª Ode E eu era parte de toda a gente que partia. A minha alma era parte do lenço com que aquela rapariga acenava Da janela afastando-se de comboio... O adeus do rapaz de boné claro É dirigido a alguém dentro de mim Sem que ele o queira ou o saiba... E Paris-Fuentes d'Oñoro Em letras encarnadas em fundo branco Ao centro da carruagem, e no alto Em letras que parecem mais vivas e sábias Cª Internacional dos Wagons [...] E o comboio avança — eu fico...
Álvaro de Campos
Estatelo-me ao comprido em toda a vida E urro em mim a minha ferocidade de viver... Não há gestos de prazer pelo mundo que valham A alegria estupenda de quem não tem outro modo de a exprimir Que rolar-se pelo chão entre ervas e malmequeres E misturar-se com terra até sujar o fato e o cabelo... Não há versos que possam dar isto... Arranquem um (...) de erva, trinquem-na e perceber-me-ão, Perceberão completamente o que eu incompletamente exprimo. Tenho a fúria de ser raiz A perseguir-me as sensações por dentro como uma seiva... Queria ter todos os sentidos, incluindo a inteligência, A imaginação e a inibição À flor da pele para me poder rolar pela terra rugosa Mais de dentro, sentindo mais rugosidade e irregularidades. Eu só estaria contente se o meu corpo fosse a minha alma... Assim todos os ventos, todos os sóis, e todas as chuvas Seriam sentidos por mim do único modo que eu quereria... Não podendo acontecer-me isto, desespero, raivo, Tenho vontade de poder arrancar à dentada o meu fato E depois ter pesadas garras de leão para me despedaçar Até o sangue correr, correr, correr, correr... Sofro porque tudo isto é absurdo Como se me tivesse medo alguém, Com o meu sentimento agressivo para o destino, para Deus, Que nasce de encararmos com o Inefável E medirmos bem, de repente, a nossa fraqueza e pequenez.
Álvaro de Campos
Futilidade, irrealidade, (...) estática de toda a arte, Condenação dos artistas a não viver! Ó quem nos dera, Walt, A terceira coisa, a média entre a arte e vida A coisa que sentiste, e não seja estática nem dinâmica, Nem real nem irreal Nem nós nem os outros — Mas como até imaginá-la? Ou mesmo apreendê-la Mesmo sem a esperança de não a ter nunca? A dinâmica pura, a velocidade em si, Aquilo que dê absolutamente as coisas, Aquilo que chegue tactilmente aos sentidos, Construamos comboios, Walt, e não os cantemos, Cavemos e não cantemos, meu velho, o cavador e o campo, Provemos e não escrevamos, Amemos e não construamos, Metamos dois tiros de revólver na primeira cabeça com chapéu E não façamos onomatopeias inúteis e vãs no nosso verso No nosso verso escrito em prosa, e depois [....]. Poema que esculpisse em Móvel e Eterno a escultura, Poema que (...)se palavras Que (...) ritmo o canto, a dança e (...) Poema que fosse todos os poemas, Que dispensasse bem outros poemas, Poema que dispensasse a Vida. Irra, faço o que quero, estorça o que estorça no meu ser central, Force o que force em meus nervos industriados a tudo, Maquine o que maquine no meu cérebro furor e lucidez, Sempre me escapa a coisa em que eu penso, Sempre me falta a coisa que (...) e eu vou ver se me falta, Sempre me falta, em cada cubo, seis faces, Quatro lados em cada quadrado do que quis exprimir, Três dimensões na solidez que procurei perpetuar... Sempre um comboio de criança movido a corda, a corda, Terá mais movimento que os meus versos estáticos e lidos, Sempre o mais verme dos vermes, a mais química célula viva Terá mais vida, mais Deus, que toda a vida dos meus versos, Nunca como os duma pedra todos os vermelhos que eu descreva, Nunca como numa música todos os ritmos que eu sugira! Nunca como (...) Eu nunca farei senão copiar um eco das coisas, O reflexo das coisas reais no espelho baço de mim. A morte de tudo na minha sensibilidade (que vibra tanto!) A secura real eterna do rio lúcido da minha imaginação! Quero cantar-te e não posso cantar-te, Walt! Quero dar-te o canto que te convenha, Mas nem a ti, nem a nada, — nem a mim, ai de mim! — dou um canto... Sou um surdo-mudo berrando em voz alta os seus gestos, Um cego fitando à roda do olhar um invisível-tudo Assim te canto, Walt, dizendo que não posso cantar-te! Meu velho comentador da multiplicidade das coisas, Meu camarada em sentir nos nervos a dinâmica marcha Da perfeita físico-química da Da energia fundamental da aparência das coisas para Deus, Da distinta forma de sujeito e objecto para além da vida Andamos a jogar às escondidas com a nossa intenção... Fazemos arte e o que queremos fazer afinal é a vida. O que queremos fazer já está feito e não está em nós fazê-Io, E fá-lo o [...] melhor do que nós, mais de perto, Mais instintivamente [...] Sim, se o que nos poemas é o que vibra e fala, 4O mais casto gesto da vida é mais sensual que o mais sensual dos poemas, Porque é feito por alguém que vive, porque é (...) porque é Vida.
Álvaro de Campos
Há tanto tempo que não sou capaz De escrever um poema extenso! Há anos... Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico Em que a ideia e a forma, Numa unidade de corpo com alma, Unanimemente se moviam... Perdi tudo que me fazia consciente De uma certeza qualquer no meu ser... Hoje o que me resta? O sol que está sem que eu o chamasse... O dia que me não custou esforço... Uma brisa, com a festa de uma brisa Que me dão uma consciência do ar... E o egoísmo doméstico de não querer mais nada Mas, ah!, minha <i>Ode Triunfal</i> , O teu movimento rectilíneo! Ah, minha <i>Ode Marítima</i> A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo! E os meus planos, então, os meus planos — Esses é que eram as grandes odes. E aquela a <i> </i> última a suprema a impossível!
Álvaro de Campos
No ocaso, sobre Lisboa, no tédio dos dias que passam, Fixo no tédio do dia que passa permanentemente Moro na vigília involuntária como um fecho de porta Que não fecha coisa nenhuma. Meu coração involuntário, impulsivo, Naufraga a esfinges indigentes Nas consequências e fins, [acordando?] no [além?]...
Álvaro de Campos
VIAGEM Sonhar um sonho é perder outro. Tristonho Fito a ponte pesada e calma... Cada sonho é um existir de outro sonho Ó eterna desterrada em ti própria, ó minha alma! Sinto em meu corpo mais conscientemente O rodar estremecido do comboio. Pára?... Com um como que intento intermitente De (...) mal-roda, estaca. Numa estação, clara De realidade e gente e movimento. Olho p'ra fora... Cesso. Estagno em mim. Resfolgar da máquina... Carícia de vento Pela janela que se abre... Estou desatento... Parar... seguir... parar... Isto é sem fim Ó o horror da chegada! Ó horror. Ó nunca chegares, ó ferro em trémulo seguir! À margem da viagem prossegue... Trunca A realidade, passa ao lado do ir E pelo lado interior da Hora Foge, usa a eternidade, vive... Sobrevive ao momento (...) vai! Suavemente... suavemente, mais suavemente e demora (...) entra na gare... Range-se... estaca... É agora! Tudo o que fui de sonho, o eu-outro que tive Resvala-me pela alma... Negro declive Resvala, some-se, para sempre se esvai E da minha consciência um Eu que não obtive Dentro em mim de mim cai.
Álvaro de Campos
A PARTIDA E eu o complexo, eu o numeroso, Eu a saturnália de todas as possibilidades, Eu o quebrar do dique de todas as personalizações, Eu o excessivo, eu o sucessivo, eu o (...) Eu o prolixo até de continências e paragens, Eu que tenho vivido através do meu sangue e dos meus nervos Todas as sensibilidades correspondentes a rodas as metafísicas Que tenho desembarcado em todos os portos da alma, Passado em aeroplano sobre todas as terras do espírito, Eu o explorador de todos os sertões do raciocínio, O (...) O criador de Weltanschauungen, Pródigo semeador pela minha própria indiferença De correntes de moderno todas diferentes Todas no momento em que são concebidas verdades Todas pessoas diferentes, todas eu-próprio apenas — Eu morrerei assim? Não: o universo é grande E tem possibilidade de coisas infinitas acontecerem. Não: tudo é melhor e maior que nós o pensamos E a morte revelará coisas absolutamente inéditas... Deus será mais contente. Salve, ó novas coisas, a acontecer-me quando eu morrer, Nova mobilidade do universo a despontar no meu horizonte Quando definitivamente Como um vapor largando do cais para longa viagem, Com a banda de bordo a tocar o hino nacional da Alma Eu largado para X, perturbado pela partida Mas cheio da vaga esperança ignorante dos emigrantes, Cheio de fé no Novo, de Crença limpa no Ultramar, Eia — por aí fora, por esses mares internado, À busca do meu futuro — nas terras, lagos e rios Que ligam a redondeza da terra — todo o Universo — Que oscila à vista. Eia por aí fora... Ave atque vale, ó prodigioso Universo... Haverá primeiro Uma grande aceleração das sensações, um (...) Com grandes dérapages nas estradas da minha consciência, (...) (E até à aterissage final do meu aero (...) ) Uma grande conglobação das sensações incontíguas, Veloz silvo voraz do espaço entre a alma e Deus Do meu (...) Os meus estados de alma, de sucessivos, tornar-se-ão simultâneos, Toda a minha individualidade se amarrotará num só ponto, E quando, prestes a partir, Tudo quanto vivo, e o que viverei para além do mundo, Será fundido num só conjunto homogéneo e incandescente E com um tal aumentar do ruído dos motores Que se torna um ruído já não férreo, mas apenas abstracto, Irei num silvo de sonho de velocidade pelo Incógnito fora Deixando prados, paisagens, vilas dos dois lados E cada vez mais no confim, nos longes do cognoscível, Sulco de movimento no estaleiro das coisas, Nova espécie de eternidade dinâmica ondeando através da eternidade estática — s-s-s-ss-sss z-z-z-z-z-z automóvel divino
Álvaro de Campos
E quando o leito estiver quase ao pé do tecto E eu olhando para trás, por esta vigia — o quarto todo com os seus armários, E sentindo na alma o movimento da hélice do navio, Verei já tudo ao longe e diferente e frio... As minhas sensações numa cidade amontoada distante E ao fundo, por detrás delas, o universo inteiro, ponte que finda...
Álvaro de Campos
Meu coração, mistério batido pelas lonas dos ventos... Bandeira a estralejar desfraldadamente ao alto, Árvore misturada, curvada, sacudida pelo vendaval, Agitada como uma espuma verde pegada a si mesma, (...) Para sempre condenada à raiz de não se poder exprimir! Queria gritar alto com uma voz que dissesse! Queria levar ao menos a um outro coração a consciência do meu! Queria ser lá fora... Mas o que Sou? O trapo que foi bandeira, As folhas varridas para o canto que foram ramos, As palavras socialmente desentendidas, até por quem as aprecia, Eu que quis fora a minha alma inteira, E ficou só a chapéu do mendigo debaixo do automóvel, Estragado estragado, E o riso dos rápidos Soou para trás na estrada dos felizes...
Álvaro de Campos
Entremos na morte com alegria! Caramba O ter que vestir fato, o ter que lavar o corpo, O ter que ter razão, semelhanças, maneiras e modos; O ter rins, fígado, pulmões, brônquios, dentes. Coisas onde há dor de [...] e moléstias (Merda para isso tudo!) Estou morto, de tédio também Eu bato, a rir, com a cabeça nos astros Como se desse com ela num arco de brincadeira Estendido, no carnaval, de um lado ao outro do corredor, Irei vestido de astros; com o sol por chapéu de coco No grande Carnaval do espaço entre Deus e a vida. Meu corpo é a minha roupa de baixo; que me importa Que o seu carácter de lixo seja terra no jazigo Que aqui ou ali a coma a traça orgânica toda? Eu sou Eu . Viva eu porque estou morto! Viva! Eu sou eu . Que tenho eu com a roupa-cadáver que deixo? Que tem o cu com as calças? Então não teremos nós cuecas por esse infinito fora? O quê, o para além dos astros nem me dará outra camisa? Bolas, deve haver lojas nas grandes ruas de Deus. Eu, assombroso e desumano, Indistinto a esfinges claras, Vou embrulhar-me em estrelas E vou usar o Sol como chapéu de coco Neste grande carnaval do depois de morrer. Vou trepar, como uma mosca ou um macaco pelo sólido Do vasto céu arqueado do mundo, Animando a monotonia dos espaços abstractos Com a minha presença subtilíssima.
Álvaro de Campos
Aquela falsa e triste semelhança Entre quem julgo ser e quem eu sou. Sou a máscara que volve a ser criança, Mas reconheço, adulto, aonde estou, Isto não é o Carnaval, nem eu. Tenho vontade de dormir, e ando. O que passa, ondeando, em torno meu, Passa (...) Dormir, despir-me deste mundo ultraje, Como quem despe um dominó roubado. Despir a alma postiça como a um traje. Tenho náusea carnal do meu destino. Quase me cansa me cansar. E vou, Anónimo, (...) menino, Por meu ser fora à busca de quem sou.
Álvaro de Campos
Há tanto tempo que não sou capaz De escrever um poema extenso! Há anos... Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico Em que a ideia e a forma, Numa unidade de corpo com alma, Unanimemente se moviam... Perdi tudo que me fazia consciente De uma certeza qualquer no meu ser... Hoje o que me resta? O sol que está sem que eu o chamasse... O dia que me não custou esforço... Uma brisa, com a festa de uma brisa Que me dão uma consciência do ar... E o egoísmo doméstico de não querer mais nada Mas, ah!, minha <i>Ode Triunfal</i> , O teu movimento rectilíneo! Ah, minha <i>Ode Marítima</i> A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo! E os meus planos, então, os meus planos — Esses é que eram as grandes odes. E aquela a <i> </i> última a suprema a impossível!
Álvaro de Campos
[I] Hela hoho, helahoho! Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras... Numa manhã triunfal, Numa longa linha como que pintada em minha alma <sub>,</sub> Sucessivamente, indeterminadamente, Couraças, lanças, capacetes brilhando, Escudos virados para mim, Viseiras caídas, cotas de malha <sub>,</sub> Os prélios, as justas, os combates, as emboscadas. Archeiros de Crecy e de Azincourt! [Armas de Arras?]. E tudo é uma poeira incerta, uma nuvem de gente anónima Que o vento da estratégia levanta em [formas divinas?], E em ondas sopra entre os meus olhos atentos E o Sol da verdade eterna, e a encobre sinistramente. Marcha triunfal, onde a um tempo e não a um tempo, Onde numa simultaneidade por transparências uns de outros, Surgem, aparecem, aglomeram-se em minha consciência, Os guerreiros de todos os tempos, os soldados de todas as raças, As couraças de todas as origens, As armas brancas de todas as forjas, As hostes compostas de usos marciais de todos os exércitos.