Poemas sobre Sonhos
Poesia que celebra a imaginação, a busca de objetivos e a realização de sonhos.
Manuel Bandeira
Sonhei ter sonhado Que havia sonhado. Em sonho lembrei-me De um sonho passado: O de ter sonhado Que estava sonhando. Sonhei ter sonhado... Ter sonhado o quê? Que havia sonhado Estar com você. Estar? Ter estado, - Que é tempo passado. Um sonho presente Um dia sonhei. Chorei de repente, Pois vi, despertado, Que tinha sonhado.
Manuel Bandeira
Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes. A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite. Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Não quero o êxtase nem os tormentos. Não quero o que a terra só dá com trabalho. As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens. Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado. — Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Manuel Bandeira
Eu vi uma rosa — Uma rosa branca — Sozinha no galho. No galho? Sozinha No jardim, na rua. Sozinha no mundo. Em torno, no entanto, Ao sol de mei-dia, Toda a natureza Em formas e cores E sons esplendia. Tudo isso era excesso. A graça essencial, Mistério inefável — Sobrenatural — Da vida e do mundo, Estava ali na rosa Sozinha no galho. Sozinha no tempo. Tão pura e modesta, Tão perto do chão, Tão longe na glória Da mística altura, Dir-se-ia que ouvisse Do arcanjo invisível As palavras santas De outra Anunciação. Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira
Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto Quero quero Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero. Petrópolis, fevereiro de 1947
Manuel Bandeira
Sou bem-nascido. Menino, Fui, como os demais, feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis. Veio o mau gênio da vida, Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida, Rugiu como um furacão, Turbou, partiu, abateu, Queimou sem razão nem dó — Ah, que dor! Magoado e só, — Só! — meu coração ardeu: Ardeu em gritos dementes Na sua paixão sombria... E dessas horas ardentes Ficou esta cinza fria. — Esta pouca cinza fria... 1917
Manuel Bandeira
É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia... Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha... No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada. (Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!) Um velho senta-se a meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia... Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância. Ei-lo que saca de um papel... Dobra-o direito, ajusta as pontas, E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas... Com outro moço que se cala. Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala: — É de política. Adiante uma senhora, magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra. E, junto dela, Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou sevinha. Se ela vier, mando matar Uma galinha." E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria À sua imensa, a sua eterna Melancolia...
Manuel Bandeira
Os poucos versos que aí vão, Em lugar de outros é que os ponho. Tu que me lês, deixo ao teu sonho Imaginar como serão. Neles porás tua tristeza Ou bem teu júbilo, e, talvez, Lhes acharás, tu que me lês, Alguma sombra de beleza... Quem os ouviu não os amou. Meus pobres versos comovidos! Por isso fiquem esquecidos Onde o mau vento os atirou.
Manuel Bandeira
Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja, Repousa, embalsamado em óleos vegetais, O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja, Dançava descuidosa, e hoje não dança mais... Quem não a viu é bem provável que não veja Outro conjunto igual de partes naturais. Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja. E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais. A morte a surpreendeu um dia que sonhava. Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis À terra, sobre a qual tão de leve pesava... Eram as suas mãos mais lindas sem anéis... Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava... Seu destino foi curto e bom... — Não a choreis.
Manuel Bandeira
Se não a vejo e o espírito a afigura, Cresce este meu desejo de hora em hora... Cuido dizer-lhe o amor que me tortura, O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora. Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura... Abrir-lhe o incerto coração que chora, Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura, Agora embravecida e mansa agora... E é num arroubo em que a alma desfalece De sonhá-la prendada e casta e clara, Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo... Mas ela chega, e toda me parece Tão acima de mim... tão linda e rara... Que hesito, balbucio e me acobardo.
Manuel Bandeira
Ser de eleição em cujo olhar a natureza Acendeu a fagulha altiva que fascina, Tu trazias aquela aspiração divina De realizar na vida a perfeita beleza. Creste achá-la no amor, na indizível surpresa Da posse — o sonho mau que desvaira e ilumina. Vencido, escarneceste a virtude mofina... Tua moral não foi a da massa burguesa. Morreste incontentado, e cada seduzida Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores Não encontraste nunca o sentido da vida. Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno... Para os poetas e para os graves pensadores Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno. 1907
Manuel Bandeira
O que tu chamas tua paixão, E tão-somente curiosidade. E os teus desejos ferventes vão Batendo as asas na irrealidade... Curiosidade sentimental Do seu aroma, da sua pele. Sonhas um ventre de alvura tal, Que escuro o linho fique ao pé dele. Dentre os perfumes sutis que vêm Das suas charpas, dos seus vestidos, Isolar tentas o odor que tem A trama rara dos seus tecidos. Encanto a encanto, toda a prevês. Afagos longos, carinhos sábios, Carícias lentas, de uma maciez Que se diriam feitas por lábios... Tu te perguntas, curioso, quais Serão seus gestos, balbuciamento, Quando descerdes nas espirais Deslumbradoras do esquecimento... E acima disso, buscas saber Os seus instintos, suas tendências... Espiar-lhe na alma por conhecer O que há sincero nas aparências. E os teus desejos ferventes vão Batendo as asas na irrealidade... O que tu chamas tua paixão, É tão-somente curiosidade.
Manuel Bandeira
Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância. Fora, a mortiça luz do crepúsculo arde. Nas árvores, no oceano e no azul da distância Morre a tarde... Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham No pranto das desesperanças dolorosas. Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham, Morrem as rosas... Morre o teu sonho?... Neste instante o pensamento Acabrunha o meu ser como um pesar medonho. Ah, por que temo assim? Dize: neste momento Morre o teu sonho...
Manuel Bandeira
Enquanto nesta atroz demora, Que me tortura, que me abrasa, Espero a cobiçada hora Em que irei ver-te à tua casa; Por enganar o meu desejo De inteira e descuidada posse, Ai de nós! que não antevejo Uma só vez que ao menos fosse; Sentindo em minha carne langue Toda a volúpia do teu sonho, Toda a ternura do teu sangue, Minh'alma nestes versos ponho; Por que os escondas de teu seio No doce e pequenino vale, — Por que os envolva o teu enleio, Por que o teu hálito os embale; E o meu desejo, que assim foge Ao pé de ti e te acarinha, Possa sentir que és minha hoje, E és para todo o sempre minha...
Manuel Bandeira
O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo Que me adoça o pesar de estar em terra estranha. E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo, Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo, Fitando no horizonte a linha da montanha. A montanha é trangjúila e forte, e grande e boa. Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar (Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!) Que tu, na doce paz da tarde que se escoa, Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar. Embalada na voz do grande solitário, Tu mortificarás teu casto coração Na dor de revocar o noivado precário. (Ah, por que te confiei o meu desejo vário? Por que me desvendaste a tua sedução?) Se nos aparta o espaço, o tempo — esse nos liga. A lembrança é no amor a cadeia mais pura. Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga: O mar segredará tudo quanto eu te diga, E a montanha dir-me-á tua imensa ternura.
Manuel Bandeira
As estrelas tremem no ar frio, no céu frio... E no ar frio pinga, levíssima, a orvalhada. Nem mais um ruído corta o silêncio da estrada, Senão na ribanceira um vago murmáúrio. Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio, Pensando em ti, ó doce imagem adorada!... As estrelas tremem no ar frio, no céu frio, E no ar frio pingam as gotas da orvalhada... E enquanto penso em ti, no meu sonho erradio, Sentindo a dor atroz dessa ânsia incontentada, — Fora, aos beijos glaciais e cruéis da geada, Tremem as flores, treme e foge, ondeando, o rio, E as estrelas tremem no ar frio, no céu frio...
Manuel Bandeira
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro (Embora a manhã já estivesse avançada). Chovia. Chovia uma triste chuva de resignação Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite. Então me levantei, Bebi o café que eu mesmo preparei, Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando... — Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Manuel Bandeira
Atrás de minha fronte esquálida, Que em insônias se mortifica, Brilha uma como chama pálida De pálida, pálida mica... Não a acendeu a ardente febre, Ai de mim, da consumpção hética Que esgalga, até que um dia a quebre, A minha carcaça caquética! Nem a alumiou a fantasia Por velar de rúbido pejo Aquela agitação sombria Que em pancadas de mau desejo Tortura o coração aflito, Sugere requintes de gozo, Por concriar — sonho infinito — O andrógino miraculoso! A chama que em suave lampejo A esquálida tez me ilumina, Não a ateou febre nem desejo, — Mas um beijo de Colombina
Manuel Bandeira
Quando o poeta aparece, Sacha levanta os olhos claros, Onde a surpresa é o sol que vai nascer. O poeta a seguir diz coisas incríveis, Desce ao fogo central da Terra, Sobe na ponta mais alta das nuvens, Faz gurugutu pif paf, Dança de velho, Vira Exu. Sacha sorri como o primeiro arco-íris. O poeta estende os braços, Sacha vem com ele. A serenidade voltou de muito longe. Que se passou do outro lado? Sacha mediunizada — Ah — pa — papapá — papá — Transmite em Morse ao poeta A última mensagem dos Anjos. 1931
Manuel Bandeira
Dorme, dorme, dorme... Quem te alisa a testa Não é Malatesta, Nem Pantagruel — O poeta enorme. Quem te alisa a testa É aquele que vive Sempre adolescente Nos oásis mais frescos De tua lembrança. Dorme, ele te nina. Te nina, te conta — Sabes como é —, Te conta a experiência Do vário passado, Das várias idades. Te oferece a aurora Do primeiro riso. Te oferece o esmalte Do primeiro dente. A dor passará, Como antigamente Quando ele chegava. Dorme... Ele te nina Como se hoje fosses A sua menina.
Manuel Bandeira
Meu caro Rui Ribeiro Couto, a mocidade Promete mais que dá. Sonhamos se dormimos, E sonhamos quando acordados. Altos cimos Da aspiração, que em torno vê só a imensidade! Assim, amigo, foi você; assim eu fui. Mas terminada a mocidade, o sonho rui? Não, não rui. Pois o sonho, amigo, não é cousa Feita de pedra e cal: o sonho é cousa fluida. Enquanto dura a mocidade, que não cuida Senão de se gastar, nem pára, nem repousa, Vai de despenhadeiro a outro despenhadeiro. Mas com o tempo serena e flui como um ribeiro. Um dia as ilusões de Vitorino Glória Se terão dissipado. Em cada nervo e músculo Sentirá ele, na doçura do crepúsculo, O que houve de melhor na sua louca história. Apaziguado há de sorrir ao sonho roto, E encontrará, dentro em si mesmo, o pouso, o couto.
Manuel Bandeira
Na calada Da alta noite, Quando a sombra é como a augusta Antecipação da morte, Grita o fauno: — "Bem que velho, Te reclamo. Bem que velho, Te desejo, Quero e chamo, O novelletum quod ludis In solitudine cordis! Ó desejada que ainda Não sabes que és desejada! Deixa os brancos véus do pejo E no inóspito jardim Das oliveiras te cobre De cilício da paixão! Respira as auras ardentes, Cospe fogo, Vira vento e furacão, Sopra rijo sobre mim, Me delabra, me ensorcela, Ninfa bela! Não jamais Ninfomaníaca: és triste, Ês calada, És elegíaca. Por isso mesmo é que te amo, Te desejo, Quero e chamo, "Ninfa! Aonde estás? Aonde?..." Grita o fauno, mas só o eco De sua voz lhe responde Na calada Da alta noite, Quando a sombra é como a augusta Antecipação da morte.
Manuel Bandeira
Um dia pensei um poema para Maísa "Maísa não é isso Maísa não é aquilo Como é então que Maísa me comove me sacode me buleversa me hipnotiza? Muito simplesmente Maísa não é isso mas Maísa tem aquilo Maísa não é aquilo mas Maísa tem isto Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos A boca de Maísa é isto isso e aquilo Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos? Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão. A boca de Maísa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos de Maísa podem ser sérios e como a boca de Maísa pode ser amarga! Boca da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável)" Cacei imagens delirantes Maísa podia não gostar Cassei o poema. Maísa reapareceu depois de longa ausência Maísa emagreceu Está melhor assim? Nem melhor nem pior Maísa não é um corpo Maísa são dois olhos e uma boca Essa é a Maísa da televisão A Maísa que canta A outra eu não conheço não Não conheço de todo Mas mando um beijo para ela.